Destruindo o Conceito Actual de Tecnologia

Tecnologia é conhecimento científico aplicado às artes e ofícios [1]. Utilizando uma terminologia mais moderna, é conhecimento aplicado ao “fazer” humano.

Estamos aqui há milhares de anos, construindo um mundo, transformando a natureza e a nós mesmos neste processo de construção. Marx afirma que “[o] que distingue as diferentes épocas económicas não é o que se faz, mas como, com que meios de trabalho se faz [2]. A tecnologia, então, revoluciona os meios de trabalho e distingue diferentes épocas económicas. A primeira revolução industrial teve a sua génese fortemente influenciada por novas tecnologias. Nessa altura, as ciências aplicadas possibilitaram o advento de máquinas que substituíram/minimizaram a necessidade da força física humana. Combustão de materiais, energia eléctrica, hidráulica, mecânica, deram suporte a mudanças substanciais na produção, nos indivíduos e na sociedade na primeira metade do século passado. A associação entre tecnologia e máquinas vem, provavelmente, dessas revoluções.

No entanto, a tecnologia é mais do que simples máquinas. Essa visão reducionista impede que percebamos o impacto das ciências no nosso quotidiano. A ciência do comportamento aplicada à educação é tecnologia educacional; a biologia aplicada às práticas de saúde é tecnologia médica; à agricultura é tecnologia agrícola/de alimentos. A tecnologia assim entendida influencia os modos de fazer educação, os modos de fazer medicina, os modos de fazer agricultura. Essa influência estende-se a todos os modos do “fazer” humano, extrapolando o mundo do trabalho. Assim, toda a descoberta científica que possa ser incorporada nos modos de “fazer” humano, racionalizando, acelerando, e minimizando esforços, é considerada tecnologia.

Actualmente, associamos a “tecnologia” com a Informática e a Computação – com as ciências digitais. Temos que considerar, no entanto, que esta associação não seria feita há cinquenta anos atrás e, convenhamos, há 50 anos atrás já tínhamos uma tecnologia bem desenvolvida. Mas, a partir do desenvolvimento e difusão dos sistemas binários, temos vindo a construir esta associação, como se tecnologias só fossem aquelas criadas com base nessas ciências.

O actual estágio de desenvolvimento da tecnologia digital tem uma característica marcante que a diferencia de todas as outras tecnologias e que talvez explique o enfoque reducionista: é uma tecnologia abrangente, ou seja, aplicável em vários sectores produtivos. Ela é ferramenta para o agricultor, para o bancário, para o estudante, para a secretária, para o médico, para o pesquisador, para o professor, ad infinitum. Ela é assim “a tecnologia” e vem revolucionando o mundo do trabalho.

E vem-o revolucionando de tal forma, que as organizações delegam na tecnologia muitas das responsabilidades que lhes cabem a si. Nomeadamente, esperam as organizações que instalando um sistema aplicacional de CRM (gestão de relacionamento com o cliente) e não cuidando da amabilidade de quem interage directamente com os clientes, estes não mais olhem para as organizações concorrentes. Esperam que instalando sistemas de datawarehousing não mais seja necessário olhar para as tendências de mercado e abrir bem os olhos para o que pode ser uma ideia inovadora e de sucesso. Esperam que adquirindo uma ferramenta de gestão de conhecimento o seu capital intelectual comece a circular fluentemente. Contudo, tal como a tecnologia não vem só das ciência digitais, a tecnologia também não é a resposta a nenhum dos nossos problemas. A tecnologia é uma ferramenta de valor incalculável mas nunca será capaz de planear, gerir, adaptar, analisar, investigar, raciocinar, inovar, etc.. Isso cabe-nos a nós.

Observamos assim uma redução no conceito de tecnologia aliada à sua idolatração: de ciência aplicada à actividade humana para máquina, de máquina para máquina digital, e agora para máquina toda-poderosa. Estas concepções dificultam a compreensão do papel da tecnologia no nosso quotidiano e, mais concretamente, no quotidiano das organizações. É impressionante a miopia daí advinda, tomando conta do mundo do trabalho. Este enfoque reducionista – tecnologia = máquina = máquina digital – e a ênfase no artefacto digital como “a solução” chega a ser suicida e foi-o, efectivamente, para muitas empresas. É necessário subverter este cenário de ficção científica e estabelecer, claramente, o papel das tecnologias: são ferramentas, necessárias sim – já que é impossível esculpir uma miniatura sem um machado – mas não suficientes – já que é impossível esculpir uma miniatura sem um processo racional, metódico, sem conhecimento, mesmo tendo ferramentas apropriadas.

[1] Aurélio, Novo Dicionário. Tecnologia. p.1360

[2] Marx, Karl. O capital. p. 204

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