No Brasil, o programa Interlegis é responsável por integrar em rede todos as Casas Legislativas do país. O Interlegis faz isso oferecendo computadores, formando para o uso das máquinas e programas, disponibilizando ferramentas para a gestão do processo de tramitação de leis, assessorando as Casas no processo legislativo, fornecendo espaço para a disponibilização de páginas na rede mundial de computadores, entre outras funcionalidades. Atualmente, mais de duas mil das 5.561 Câmaras municipais brasileiras são oficialmente conveniadas ao Interlegis, todas as Assembléias Legislativas e ainda o Congresso Nacional.
Com tais números, essa iniciativa do Congresso em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) é, certamente, uma das maiores redes de troca de informações dedicadas ao trabalho legislativo em todo o mundo. Via de conseqüência, poderia ser também uma das maiores redes mundiais de produção de conhecimento sistemático sobre o processo legislativo. Qualquer um concordará que isso seria muito bom para os cidadãos e para a sociedade brasileira e, quem sabe, para todo o chamado “mundo democrático”.
É curioso que os técnicos, especialistas e produtores de teorias sobre Gestão de Conhecimento no Brasil, até o momento, tenham ignorado sobejamente a prática legislativa como objeto de intervenção. Já se disse que a área de CG é demasiadamente voltada para o mercado empresarial. São poucos os trabalhos disponíveis em língua portuguesa sobre como verter as técnicas, métodos e conceitos da Gestão de Conhecimento para a esfera pública. Entre os poucos títulos produzidos com esse enfoque, a maioria parece se concentrar nas empresas estatais – cuja lógica de funcionamento gerencial tende a se aproximar bastante do padrão adotado pelas empresas privadas, inclusive no que se refere à competição de mercado. São ínfimos, enfim, os trabalhos voltados para a reflexão acerca da Gestão de Conhecimento naquelas instituições onde as categorias usuais da CG precisariam de uma completa reformulação para serem bem sucedidas. Entre essas instituições estão os partidos políticos, as entidades sindicais, as organizações do terceiro setor e, sem dúvidas, o Legislativo.
A relevância e a urgência da abertura de linhas de pesquisa e experimentação nessas instituições, me parece, salta aos olhos. O Estado Moderno, e o conjunto de seus desdobramentos administrativos, têm sido desde seu surgimento os maiores produtores e consumidores de dados, informações e conhecimentos sobre todas as áreas de atividade humana. Da competição no mercado à produção de filosofia, o Estado é uma presença inescapável, mesmo nesses tempos de Estado mínimo. Por outro lado, se o capital intelectual de qualquer organização se encontra no conhecimento de cada indivíduo que a compõe, temos no Estado a maior massa bruta de sabedoria individual reunida em uma mesma organização. Apenas na esfera federal, o número de servidores públicos no Brasil ultrapassa a casa dos 800 mil funcionários ativos. Considerados todos os serviços e vínculos do Estado com a população, temos uma base de dados mais que gigantesca e em constante atualização.
No caso do Poder Legislativo, cujos números não são menos exorbitantes, a existência de uma metodologia avançada de CG aplicada seria da maior relevância por razões evidentes:
- a prática política pede, atualmente, decisões cada vez melhor informadas;
- o legislador está em contato direto com a comunidade e é, ele próprio, um gestor de informações e conhecimentos;
- suas decisões têm efeito direto sobre a vida de comunidades com alguns milhares e dezenas de milhares de pessoas;
- entre todos os projetos dos governos democráticos, o Legislativo é, provavelmente, o mais caro, ineficiente e desarticulado;
- o poder legislativo passa, nas última décadas por uma forte crise de credibilidade.
Nas democracias representativas, o parlamento é um espaço natural e obrigatório para a produção de consensos e para as definições de regras legais e, deve ser visto como uma das formas de expressão da sociedade civil. Não há como garantir a qualidade da democracia, expandir mercados, favorecer a sociedade civil ou lutar contra as desigualdades sociais sem a existência de parlamentos fortes e atuantes. Fica evidente, por si, a grande utilidade que a Gestão de Conhecimento poderia ter na realização desse objetivo geral.
Todavia, em qualquer das três dimensões básicas das práticas de GC, a realidade do legislativo brasileiro é desértica. Não temos experiências significativas e sistemáticas na gestão do conhecimento individual (gestão de competências); a gestão do conhecimento operacional é sabidamente caótica (rotinas, trâmites, protocolos, métodos, etc.) e, quanto à gestão do conhecimento coletivo… Bom, o parlamento brasileiro não seria o que é se existem políticas sistemáticas e oficiais de disseminação de conhecimentos dentro das Casas Parlamentares e junto às comunidades.
Residem nessas constatações as evidências quanto aos limites e possibilidades do Programa Interlegis. Definido como “comunidade virtual dos legislativos brasileiros”, o Interlegis visa a modernização e integração do Poder Legislativo nos seus níveis federal, estadual e municipal, e a promoção de maior transparência e interação entre esse Poder e a sociedade. Para isso, utiliza as novas tecnologias de informação (Internet, videoconferência e transmissão de dados). Esse serviço é suportando pela Rede Nacional Interlegis (RNI) que interliga a sede do Programa, em Brasília, com o Senado Federal, a Câmara dos Deputados, o Tribunal de Contas da União e todas as Assembléias Legislativas. Todos os serviços estão reunidos em um poderoso portal que também funciona como distribuidor de notícias pertinentes à atividade parlamentar. Espera-se, com toda essa infra-estrutura, maximizar a comunicação e a troca de experiências entre as Casas Legislativas, os legisladores e o público. A meta é aumentar a participação da população no processo legislativo.
Apesar de um investimento do BID avaliado em US$ 25 milhões, a presença do Interlegis na realidade dos legislativos brasileiros é superficial. Observado pelo ângulo da qualidade dessa presença, e não pelo da quantidade de Casas conveniadas, o Programa não deu, ainda, o “salto” rumo a uma adequação inserção na Sociedade do Conhecimento. Vejamos alguns exemplos:
- a maioria das Casas conveniadas não utiliza o espaço fornecido pelo Interlegis na rede mundial de computadores. O mais comum é serem encontradas nesse espaço apenas as informações inseridas pela própria equipe do Interlegis ou informações defasadas quando inseridas pela equipe da Casa Parlamentar beneficiada;
- apesar de o projeto Interlegis oferecer hospedagem, é grande o número de Câmaras de Vereadores conveniadas que não possuem um website;
- nem mesmo as maiores casas legislativas brasileiras, tais como o Senado e a Câmara Nacional dos Deputados, possuem recursos avançados de interação com a comunidade, tais como chats, grupos de discussão, comunidades virtuais temáticas, ou meios on line que assegurem vocalização das preferências da cidadania nos processos de decisão;
- não existem políticas de acessibilidade para os portais legislativos, com a resultante estandardização do perfil do usuário. Isso em um País com baixíssimos índices de escolaridade, forte incidência de analfabetismo funcional (inclusive entre os próprios parlamentares), elevadíssima taxa de exclusão digital e cerca de 4 milhões de pessoas de baixa acuidade visual;
- são raros os instrumentos que assegurem ao cidadão o controle e o uso eficiente da navegação nos portais, tais como os “Mapas de site”, os FAQ ou outros meios de orientação.
Embora possam ser observadas algumas iniciativas inovadoras, tais como a Fábrica de Software e o Laboratório Vivo do Legislativo, medidas que visam o aumento da qualidade e produtividade do sistema de informações do Senado Federal, tais iniciativas permanecem isoladas e não se reproduzem pelo restante da malha formada pelo Poder Legislativo. Note-se que tal malha alcança todo o território nacional e deveria ser a base de um sistema nacional unificado de informações legislativas, troca de experiências e conhecimentos sobre a atividade parlamentar.
Na ausência de pesquisas avançadas sobre o assunto, as causas do baixo aproveitamento dos recursos tecnológicos, e da pequena difusão de experiências de Gestão de Conhecimento nas Casas Legislativas brasileiras, são incertas. Mas alguns indicadores laterais são interessantes e merecem um comentário.
O IBGE produz, desde 1999, a Pesquisa de Informações Básicas Municipais. Essa pesquisa coleta, em todas as prefeituras brasileiras, dados e informações sobre a estrutura administrativa, Legislação e Instrumentos de Planejamento, Recursos para a Gestão Municipal, Gestão de Trabalho e Renda e vários outros itens. Entre eles, está a presença de tecnologia e da Internet em cada município do País.
Eis alguns dados extraídos da pesquisa para 2001:
- em apenas 22,7% dos municípios brasileiros existe um provedor de Internet (crescimento de 53% em 2001, em relação a 1999);
- apenas 25% tem página oficial na Internet;
- apenas 9,7% dos municípios têm mapeamento digital informatizado (georeferenciamento).
Em contrapartida:
- os cadastros e ou bancos de dados de saúde já estão informatizados em 76,6% dos municípios;
- as folhas de pagamento e a contabilidade são feitas por computador em 95,1% e 94,1% dos municípios, respectivamente.
É notável que a pesquisa revele uma forte presença de tecnologia, mas uma baixa presença da Internet e de suas funcionalidades. A conclusão que esses dados sugerem é a de que o processo de incorporação das novas tecnologias pelas administrações municipais obedece mais à lógica financeira e orçamentaria e aos ajustes determinados pela Lei de Responsabilidade Fiscal que a um plano tipo “cidades inteligentes” ou algo que o valha. Com efeito, segundo a mesma pesquisa, 54,2% das prefeituras declararam não ter um Plano de Governo. O Instituto Brasileiro de Administração Municipal, IBAMA, antecipou essa conclusão já em sua análise dos dados relativos à pesquisa anterior e válida para o ano de 1999.
Se tomarmos em conta as lições da Sociologia brasileira e nos lembrarmos do peso e incidência dos executivos no Brasil, entenderemos que essa situação, provavelmente, tende a se reproduzir pelos legislativos municipais. Em outras palavras, a expansão e a evolução do Programa Interlegis parecem esbarrar em uma lógica que apenas compreende a incorporação de tecnologia desde o ponto de vista das necessidades do controle e da administração fazendária.
A predominância dessa perspectiva (que precisa ser verificada por pesquisas de profundidade) representa um fator crítico para a implantação de processos estratégicos de GC no legislativo brasileiro. Ela descura o investimento naquilo que, conforme toda a literatura tem insistido, é o fator essencial ao sucesso de qualquer iniciativa em Gestão de Conhecimento: o fator humano. É a mobilização das forças criativas internas e externas à instituição parlamentar, e a adoção de ações e práticas coerentes com uma mudança da cultura, que poderão levar o legislativo brasileiro a ocupar o lugar que lhe é reclamado na atual quadra de nossa vida política.
Há, portanto, aqui, um belo desafio para os gestores dessas instituições, para os especialistas em GC e para o Programa Interlegis. Trata-se de criar soluções que descentralizem a gestão de informação entre comunidades com alguns milhares de pessoas (73% dos 5.561 municípios brasileiros têm menos de 20 mil habitantes) e organizações civis e estatais que gravitam em torno do Legislativo.
Esse desafio não é apenas tecnológico, com toda a parafernália necessária para a sustentação de bancos de dados, diretórios de informações, fóruns de discussão, chats, etc., sem que se percam a sincronização e integridade dos dados. Ele é, principalmente, uma provocação à nossa cultura política. É uma questão de aposta. Vamos, ou não, acreditar que o mais simples dos cidadãos, servidor público ou não, é portador de conhecimentos úteis à democracia, ao desenvolvimento nacional e à justiça social? Façam seus lances.
Referências
Bremaeker, François e J. de. A informatização na Administração Municipal. Instituto Brasileiro de Administração Municipal, Série Estudos Especiais nº 22, Rio de janeiro – abril de 2001.
Catalá, Joan Prats. Por unos Parlamentos al servicio de la democracia, la eficiencia económica y la equidad social. CLAD, Revista Reforma y Democracia No. 6, Jul. 1996. Caracas.
Corgozinho, Ivanir. A Democracia eletrônica em Minas Gerais: os sites do legislativos. Fronteira Virtual, Belo Horizonte, abril/2003.
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – Pesquisa de Informações Básicas Municipais, 2001.