Criatividade é Fruto de quem é “Cabeça Dura”

Introdução

O fenômeno da criatividade não ocorre por acaso e é profundamente influenciado por fatores ambientais (Alencar, 1997). Pode-se dizer que o indivíduo é mais criativo nos assuntos que cercam o seu cotidiano de trabalho, uma vez que se uma pessoa trabalha na área da Tecnologia da Informação, terá maior probabilidade de propor soluções novas relacionadas a este tema. Um indivíduo que trabalha com a educação, por sua vez, terá maior possibilidade de construir novas idéias relacionadas com a educação. Isto comprova o que foi ressaltado por Alencar (1997, 64), “… Beethoven jamais poderia ter surgido na África do século XVIII, dada a inexistência de condições próprias ao estudo da música naquele local”.

De Masi (2000) afirma que dentre as atividades que são realizadas com o cérebro, as mais apreciadas e valorizadas no mercado de trabalho são as atividades criativas. Este autor também defende que a criatividade será cada vez mais útil e que a luta entre criativos e burocratas se tornará mais acirrada, pois o burocrata tem medo da inovação e os criativos têm medo do imobilismo. Na opinião desse escritor, os criativos serão vencedores porque a sociedade pós-industrial se alimenta de invenções, premia a iniciativa e joga para fora do mercado o imobilismo (De Masi, 2000).

Na opinião de Teresa Amabile (1996) a motivação para a criatividade pode ser classificada em dois tipos: motivação intrínseca e motivação extrínseca. Esta autora afirma que “a motivação extrínseca (dinheiro) é menos importante que a intrínseca (o desejo de solucionar um problema que ninguém conseguiu resolver)” (Amabile, 1999). Então se poderia afirmar que a motivação intrínseca promove a criatividade, mas a extrínseca pode ser considerada como algo que facilitara o fenômeno.

Alencar (1988), no sentido de identificar os fatores que dificultam a potencialização da criatividade das pessoas, classifica estes fatores como barreiras de caráter social ou de caráter emocional. A autora relaciona algumas respostas obtidas de seus colaboradores sobre a questão: “Eu seria mais criativo se…”. Relaciona-se na seqüência, parte das respostas classificadas pela autora como sendo as de caráter social:

Eu seria mais criativo(a) se…

  • “tivesse mais oportunidade”;
  • “recebesse mais apoio das pessoas, independentemente de estar certo ou errado”;
  • “houvesse mais estímulo à produção de novas idéias na empresa em que trabalho”;
  • “o meu chefe não fosse tão crítico”;
  • “houvesse espaço para que eu pudesse dar vazão às minhas idéias”;
  • “os grupos sociais fossem menos críticos e mais receptivos”.

Certamente o ambiente de trabalho tem uma importância para a criatividade. Mas até que ponto realmente é uma barreira inibidora? A inquietude aqui explicitada é originada de exemplos que desdizem isso, como exemplifica o caso a seguir:

“…um inventor, um certo Chester Carlson, visitou a IBM, a GE e a RCA para tentar vender-lhes o seu novo invento. As três agradeceram a gentileza de ter pensado neles, mas lamentaram achar que sua invenção não tinha futuro. Sendo cabeça dura, Carlson insistiu em querer viabilizar seu filhote mecânico, e acabou por interessar um certo Joseph Wilson no assunto. O tal Wilson tinha uma empresa pequena de nome Haloid Company, e topou a invenção de Carlson. Com o tempo, o invento deu certo e Wilson decidiu mudar o nome da empresa – hoje ela se chama Xerox Corporation.” (Semler, 1988, p.68).

Pode-se aceitar que a criatividade é fruto inspirado no ambiente. Mas até que ponto, o contexto social vivenciado pelo criador durante o processo de construção da nova idéia, pode ser visto como uma “barreira” para esse fenômeno?

Este trabalho tem o objetivo de relatar um exemplo de criatividade ocorrida no ambiente educacional sobre dois aspectos: o problema para o qual foi criado uma solução e o contexto social (1) vivenciado pelo criador (2) no momento da resolução do problema.

A menina que arranca os cabelos (3)

Luiza, codinome adotado para este artigo, é uma menina de seis anos de idade e estudava, na época, no terceiro período da educação infantil, classe de alfabetização. Esta menina aparentemente era saudável e na avaliação da professora responsável não apresentava problemas de aprendizagem.

No início do mês de agosto de 2003 a professora responsável pela turma na qual Luiza estudava, notou que Luiza estava arrancando os seus cabelos de trás da cabeça. Os cabelos de Luiza eram em forma de cachos e a mesma os enrolava em volta do dedo indicador e arrancava um cacho inteiro. Então a professora iniciou um trabalho de sondagem para descobrir o motivo que estava levando a menina a fazer isto. Passado um mês o problema persistia e a mãe de Luiza procurou a coordenadora educacional para pedir ajuda. A coordenadora (doravante denominada Anna) que recebeu a mãe de Luiza, tem formação em psicopedagogia e iniciou um trabalho investigativo para saber quais eram as causas que estavam levando a menina a este ato de autoflagelação. Após duas sessões de entrevista (Anna e Luiza) boa parte da origem do problema já era conhecida. Anna observou que a causa tinha origem na relação entre mãe e filha. O que se acentuou com o fato de a mãe ter começado a trabalhar fora de casa. Também percebeu que Luiza não gostava de seu cabelo. Neste momento Anna deu por finalizada a fase de diagnóstico e iniciou a fase de intervenção.

Anna decidiu que deveria encontrar um meio de ajudar imediatamente Luiza a parar de arrancar seus cabelos. Para isso, planejou algumas seções com Luiza para conduzi-la a uma auto-reflexão para que entendesse que não deveria arrancar seus cabelos.

Aqui começa o desafio de Anna, pois nos vários encontros com Luiza não percebia progresso na interrupção do ato. Em cada encontro, que eram diários, ficava mais evidente a personalidade forte de Luiza que tinha uma desculpa na ponta da língua para qualquer situação apresentada. Todos os argumentos e comparações criados por Anna eram rapidamente criticados e rejeitados por Luiza, que não ficava sensibilizada e continuava dura e inflexível.

Passadas duas semanas desde o inicio da fase de intervenção, Anna estava inconformada com a situação, pois tudo que tinha feito até então para ajudar Luiza não tinha efeito algum sobre a questão do cabelo. Ela continuava arrancando seus cabelos apesar de ter melhorado sua relação na sala de aula. Luiza estava mais tranqüila e participativa nas atividades em sala de aula.

Anna envolveu outras pessoas no caso como uma tentativa de que estas a ajudassem a encontrar uma solução para isso. Convidou outras crianças com cabelos similares para que Luiza as observasse e percebesse que seus cabelos não eram feios como ela pensava.

Anna não conseguia esquecer do problema em momento algum. Como fazer Luiza parar conscientemente de arrancar seus cabelos?

Luiza continuava afirmando que seus cachinhos não faziam falta na sua cabeça.

Neste momento, Anna atinou para o fato de que Luiza só arrancava os cabelos da parte de traz da cabeça. Luiza afirmava em frente ao espelho que não havia falta de cabelos em sua cabeça.

Então, Anna teve uma idéia: “tenho que fazer com que Luiza veja a falta de cabelos na parte de traz da cabeça”.

Anna lembrou-se da máquina de fotográfica digital e com isso seria fácil mostrar a Luiza como estava sua cabeça. Após este insight, estabeleceu diálogo para saber se Luiza concordaria com a foto. Luiza imediatamente concordou.

Anna prontamente tirou duas fotos de Luiza: uma em que ela aparecia de frente e outra onde aparecia a parte de trás da cabeça. Primeiramente Luiza visualizou a foto de frente e comentou: “está vendo eu não estou sem cabelos”. Em seguida foi lhe mostrada a segunda foto. Neste momento o mundo desabou para Luiza que disse: “meu Deus, essa é a minha cabeça. Eu estou quase sem cabelos atrás”.

Anna percebeu que Luiza tinha ficado assustada com o que vira. Luiza falou novamente: “Nunca mais vou arrancar os meus cabelos. Agora você me venceu”.

O ambiente social vivenciado pelo criador

Quando Anna se envolveu com o problema de Luiza, passava por uma fase bastante difícil da sua carreira profissional. Realmente estava passando por uma situação conturbada que passaremos a relatar os fatos relevantes.

Na semana anterior ao início do trabalho com Luiza, Anna tinha participado de encontro com a diretoria da Instituição onde apresentou relatório dos trabalhos executados pela escola no último ano. A avaliação da diretoria não foi boa e Anna estava inconformada com a situação. Ainda em continuação ao processo avaliativo, a diretoria encaminhou a gerente de área de educação para conversar com a direção da filial e definir uma estratégia de ação. A condução desta ação foi, na opinião de Anna, bastante conturbada e contribuiu fortemente para a desmotivação de Anna em relação a empresa. Fato ocorrido no mesmo período em que Anna conduzia a fase de intervenção do caso de Luiza.

Neste período, Anna também acompanhava as negociações de aumento salarial que sua categoria profissional estava negociando através de seus sindicatos. Anna, pessoalmente não estava satisfeita com a situação.

Resumidamente, Anna tendo em vista os fatos ocorridos estava muito desapontada com a organização, quer seja por questões salariais ou questões administrativas.

Esclarecido que Anna não exerce a função de psicopedagoga como papel formalmente instituído pela organização. Anna desempenha função estritamente administrativa.

Conclusão

O que se pode dizer após avaliar as razões que motivaram Anna a dedicar-se completamente na solução do problema de Luiza? Quais foram as razões que motivaram a sua dedicação e persistência na busca de uma solução para o problema?

A idéia de utilizar a foto digital foi uma saída criativa que só foi descoberta depois de muito esforço.

O contexto organizacional formal vivenciado pela criadora na época não contribuía para a solução do problema. Talvez o contexto organizacional tenha tido alguma influência, mas de que tipo? O fato é que Anna não teve apoio formal da organização e mesmo assim encontrou uma idéia que resolveu parte do problema.

Voltando a questão das “barreiras” do ambiente social, estas até podem existir, mas a determinação e a persistência do criador muitas vezes as superam.

Talvez isso comprove o que foi dito por De Masi, que os indivíduos criativos têm medo do imobilismo. Isso de alguma forma deve ajudá-los a encontrar a solução das suas angústias.

Certamente uma questão foi decisiva para a solução encontrada neste exemplo: “o desejo de solucionar um problema que ninguém conseguiu resolver” (Amabile, 1999).

A questão que deve ser respondida é: qual é a “química” que faz com que as pessoas sejam criativas em qualquer tipo de ambiente de trabalho?

Referências Bibliográficas

AJURIAGUERRA, J. de, Manual de Psiquiatria Infantil, 2ª. Ed. – Rio de Janeiro: Masson, 1997.

ALENCAR, Eunice M. L. Soriano de, A gerência da criatividade. São Paulo: Makron Books, 1996.

AMABILE, T. M. Como não matar a criatividade. HSM Management. v. 12, jan.-fev. 1999. Tradução: De J. Reis. 5. ed. São Paulo.

AMABILE, Teresa A. The Motivation for Creativity in Organizations: Harvard Business Scholl, 9-396-240, 1996.

DE MASI, Domenico, O Ócio Criativo – Entrevista a Maria Serena Palieri; Tradução de Léa Manzi. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.

SEMLER, Ricardo, Virado a Própria Mesa. São Paulo, Best Seller, 1988.

Notas:

(1) Fato ocorrido em uma grande instituição educacional brasileira no segundo semestre de 2003. Por questões éticas preferiu-se não identificá-la.

(2) Esta pessoa desempenha uma função gerencial na instituição. Dentre suas atribuições, tem a responsabilidade de coordenadora educacional das séries iniciais. Esta pessoa tem formação acadêmica na área educacional e especialização em psicopedagogia, porém não tem atribuição formal para exercer atividade de psicopedagoga.

(3) Segundo Ajuriaguerra (1997, p.219) o impulso irresistível de arrancar os cabelos é denominado tricotilomania.

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