Moldar a Cultura de um País

A gestão de conhecimento, em especial a partilha de conhecimento, anda de mãos dadas com a cultura da organização. Ninguém parece discordar que o conhecimento flui muito mais livremente em organizações que recompensam a partilha de conhecimento e a utilização de conhecimento já existente, que não castiguam a experimentação, que celebram a aprendizagem e a inovação.

Mas se a importância de uma cultura organizacional receptiva é aceite pela grande maioria, poucas organizações investem verdadeiramente em programas ou iniciativas de mudança cultural, e menos ainda sabem o que fazer para conseguir criar essa cultura.

Este texto não pretende explicar de que forma podem as organizações moldar a sua cultura, mas antes falar da forma como um país, Inglaterra, vem vindo a moldar a sua cultura no que diz respeito à leitura. Talvez as organizações possam extrair algumas ideias, mas, acima de tudo, espera-se que se apercebam da forma como são precisas diversas iniciativas para se conseguirem resultados. Além disso, é importante realçar que nenhum mudança duradoura será conseguida de um dia para o outro: é preciso dar tempo para que as pessoas ultrapassem as suas resistências à mudança e alterem os hábitos enraizados.

Portugal não pode ser descrito como um país com grandes hábitos de leitura e o pouco que se vai lendo é, muitas vezes, fruto de exigências ocupacionais (trabalho ou estudo).

Lembro-me que fiquei verdadeiramente espantada durante as minhas primeiras viagens nos transportes públicos ingleses: quase todos os passageiros se entretêm lendo. Entendo que o tempo que se passa em transportes públicos neste país seja, em média, muito superior ao que se passa em Portugal, mas não penso que isso seja a única justificação.

Em Inglaterra, um conjunto de iniciativas e circunstâncias, algumas privadas, outras do governo nacional e local, têm ajudado a criar os hábitos de leitura que tanto contribuem para o desenvolvimento nacional.

Comecemos por falar das bibliotecas públicas. Inglaterra pode-se gabar do grande número de bibliotecas públicas. A menos de dez minutos do local onde resido, existem quatro bibliotecas. Estas estão sob a alçada da Câmara municipal. Qualquer pessoa pode entrar e consultar os livros da biblioteca, mas é preciso estar registado para que se possa requisitar os mesmos. O registo é bastante simples e involve apenas o preenchimento de um pequeno formulário e a apresentação de uma prova de endereço de residência. O registo numa biblioteca equivale ao registo em todas as bibliotecas do município, e isso permite que seja possível requisitar um livro numa biblioteca e devolvê-lo noutra. Os livros são requisitados por perídos de três semanas, sendo possível renovar a requisição pelo telefone.

As bibliotecas têm um grande leque de títulos disponíveis, agrupados pelos mais diversos temas. Têm geralmente um cantinho para os mais pequenos e, especialmente nas bibliotecas das grandes cidades, é constante a presença de livros nas línguas mais representadas na comunidade local. No caso de estarmos interessados num livro de que a biblioteca não disponha, este pode ser encomendado mediante o pagamento de uma pequena quantia. As bibliotecas organizam também sessões de leitura, convidando escritores, muitas vezes locais, para ler e falar do seu trabalho.

Para além de tudo isto, as bibliotecas, especialmente durante as férias escolares, ainda organizam listas de leitura e passatempos para encorajar os mais novos a ler.

Muitas são as bibliotecas mas de pouco serviriam se as pessoas não tivessem já o bichinho da leitura. Entra, então em cena, uma interessante iniciativa do governo. Todos os bebés que nascem em Inglaterra recebem, por volta do seu oitavo mês de vida, e depois, mais tarde, aquando do seu terceiro aniversário, um pacote com alguns livros, bem como folhetos a explicar aos pais a importância da leitura no desenvolvimento das crianças. Os livros são, obviamente, adequados à idade das crianças e é uma forma de criar, desde cedo, o gosto pelo livro.

Estas iniciativas são governamentais, mas existem outras iniciativas privadas e outros factores que influenciam os hábitos de leitura em Inglaterra:

  • um conhecido programa televisivo, um chat show diário, elabora, anualmente, uma lista de livros nacionais, de diversos géneros, considerados de qualidade. Essa lista está disponível na Internet e em muitas livrarias e, cada semana, os apresentadores convidam algumas pessoas para comentar um dos livros. Para além dos convidados em estúdio, são ouvidos membros de vários clubes de leitura. Esta iniciativa tem tanta divulgação e significância que os telespectadores são convidados a votar no melhor livro que é, posteriormente, reconhecido durante a cerimónia do The British Book Awards 2006;
  • quase todas as livrarias de médio e grande dimensão dispõem de áreas para leitura dos livros disponíveis. Muitas alojam cafés que permitem aos potenciais clientes relaxar, tomar um cafézinho e folhear uns livros antes de decidir se os quer comprar ou não. É muito bom, especialmente num país onde chove bastante, poder entrar numa livraria para aquecer, recarregar baterias, e ver as últimas novidades bibliográficas;
  • enquanto que a época de saldos em Portugal se reflecte, essencialmente, nas lojas de vestuário, em terras inglesas também as livrarias saldam o seu stock. Fazem-se ofertas pague-um-leve-dois, oferece-se 50% de desconto (ou mais), etc.;
  • embora se comprem e vendam muitos livros, estes não deixam de ser caros (ainda que mais baratos do que em Portugal, quando se compara o nível de vida). Existem, por isso, imensas lojas de livros em segunda mão que permitem encontrar livros a preços bastante acessíveis e livros que, por vezes, já nem sequer se publicam;
  • mas, para quem ainda acha que livros em segunda mão são caros, é possível trocar livros, como por exemplo através da Internet no site http://www.readitswapit.co.uk.

Pode-se perguntar se alguns destes exemplos são causa ou consequência dos hábitos de leitura neste país. O que é certo é que, ainda que alguns possam ter originado como consequência, contribuem agora para que esses hábitos se mantenham.

Numa organização as iniciativas podem e devem ser alinhadas e estrategicamente pensadas. Ao nível de um país, envolvendo governo e organizações privadas, tal seria muito difícil. As bibliotecas não se aliaram às livrarias para criarem uma estratégia, no entanto, ao ver a quantidade de pequenas grandes iniciativas, eventos e circunstâncias que se criam, dá para perceber o que é preciso para que se consigam moldar hábitos e atitudes.

É importante que as organizações entendam o trabalho envolvido e a forma como se deve prestar atenção a vários aspectos. Para além disso, não se muda a cultura de uma organização impondo uma nova: criam-se pontos magnéticos de forma a atrair a mudança e o aparecimento das atitudes que se desejam.

3 comments

  1. Leandro 4 Março, 2006 at 23:22 Responder

    Gostei muito do seu artigo, pois a idéia de associar a leitura a Cultura e não somente a educação, configura-se como uma alternativa fantástica para as pessoas que leem por obrigação.Seja por uma necessidade de Trabalho ou da Universidade. No caso do Brasil a Leitura esta atrelada apenas a noção de educação.Se fosse insentivada, cultivada, divulgada como o carnaval , a música e o futebol sobre os quais tanto nos orgulhamos a situação da propria educação seria bem melhor. Ações de Educação e Cultura interagindo de forma conjunta daria bons frutos no caso Brasileiro. Ler por hábito é ler as estrelas sempre que olharmos para o céu.

  2. Alzira Simões 12 Março, 2006 at 13:22 Responder

    Gostava de desejar que um ano o Governo Português também se lembre de começar a fazer incentivos à leitura como os que apresenta, simplesmente fantástico e merecedor de PARABÉNS, afinal como defende o povo: “de pequenino é que se torce o pepino” e se desde tenra idade nos congratularem com livros ficamos habituados a este instrumento de passagem de conhecimento.

  3. Ferdinand 9 Janeiro, 2011 at 21:23 Responder

    Ana

    Muito bom este teu post.

    É ótimo saber ( mesmo sem a clara distinção de causa ou efeito), o que é que o vizinho rico faz (para ficar mais rico).

    Mas uma coisa que os inglêses não precisam é de aprender inglês como segunda língua.

    Hoje, a grande fonte de informação vem primeiro em inglês. Os outros países deveríam adotar políticas agressivas de ensino de inglês, para tornarem seus cidadãos competitivos nesta aldeia global.

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