Gestão de conhecimento, qualidade e a nova ISO 9001

“Os nossos produtos são de qualidade” ou “qualidade garantida” são alguns dos slogans mais habituais a que todas as empresas recorrem para promover os seus produtos e serviços. Afinal, quem seria tonto ao ponto de reconhecer que o produto não presta? Mas o que significa qualidade? Como pode a empresa ter a certeza que oferece qualidade? E o mais importante, quem decide o que é a qualidade?

O que queremos dizer com qualidade? Informalmente, significa cumprir a promessa feita ao utilizador ou cliente de que o serviço ou produto irá corresponder às suas expetativas e cumprir com o propósito para o qual foi criado. Quem avalia a qualidade? Obviamente não poderá ser o fornecedor a fazê-lo, por ser uma parte interessadas e parcial, mas o cliente quando utiliza o serviço ou produto. Todos os restaurantes, com os seus reputados chefs de cozinha, dizem que a sua comida é excelente, mas só os clientes é que podem julgar a veracidade dessa afirmação. E como é possível determinar a qualidade? Certificando-nos de que o serviço ou produto serve para atingir o objetivo para o qual foi adquirido e nas condições em que foi oferecido. E podemos determinar os valores de qualidade? A qualidade não é um elemento objetivo como o são a temperatura, peso ou altura; é subjetiva e discutível como a felicidade ou a perseverança. Por isso, é absurdo medir em números um bem intangível como se verifica com a aprendizagem no nosso sistema de ensino.

A qualidade é um dos conceitos mais comuns no mundo da gestão. O que irrompeu há décadas como uma iniciativa para tentar dar algumas garantias aos clientes em relação aos bens ou serviços adquiridos, tornou-se numa grande indústria. Atualmente, a maioria das médias e grandes empresas e instituições públicas já incorporaram nos seus organigramas departamentos de qualidade, têm políticas e sistemas de gestão de qualidade e, à sua volta, floresceu um animado mercado de certificações, consultoria, ferramentas tecnológicas, etc. A ISO tornou-se um padrão internacional para qualquer empresa que queira prosperar numa economia cada vez mais competitiva.

O padrão de qualidade ISO 9001 é o mais aplicado globalmente, sendo usado para certificar que existe um sistema de gestão destinado a assegurar a qualidade dos produtos e serviços. Em 2014, mais de 1,6 milhões de instituições no mundo inteiro foram certificadas de acordo com a versão 2008 da norma, cujo prazo de validade é geralmente limitado a cerca de três anos.

No entanto, “nem tudo o que brilha é ouro” neste pujante negócio da qualidade. Com uma análise detalhada, é fácil ver que, na maioria dos casos, as empresas procuram a certificação ISO 9001 por ser uma exigência em certos mercados ou de determinados clientes. O objetivo é obter o selo o mais rapidamente possível e cumprir as exigências, mas são poucas as organizações que estão convencidas que a qualidade é o núcleo da sua estratégia e da sua razão de existir.

Contudo, seja por convicção ou por necessidade, a nova versão 2015 da ISO 9001, promulgada em setembro, e em cuja redação estiveram envolvidas cerca de 15.000 pessoas, incorpora uma mudança fundamental que vai colocar a gestão de conhecimento na linha da frente, dando-lhe uma enorme visibilidade enquanto ferramenta de gestão. A nova ISO 9001 inclui uma cláusula que faz uma referência explícita ao conhecimento enquanto recurso de muita importância e define os requisitos para a sua gestão. Qualquer organização que pretenda ser certificada ou manter a sua certificação, deverá demonstrar como gere o seu conhecimento e como prevê incorporar o conhecimento futuro que não tem e vai precisar. A consequência óbvia da promulgação desta versão 2015 é o reconhecimento explícito da gestão de conhecimento enquanto um elemento-chave da gestão corporativa. É uma oportunidade única para todos os que acreditam na importância de gerir o conhecimento como um ativo estratégico.

O que indica a cláusula 7.1.6 sobre Conhecimento Organizacional?

The organization shall determine the knowledge necessary for the operation of its processes and to achieve conformity of products and services.

This knowledge shall be maintained and be made available to the extent necessary.

When addressing changing needs and trends, the organization shall consider its current knowledge and determine how to acquire or access any necessary additional knowledge and required updates.

NOTE 1 Organizational knowledge is knowledge specific to the organization; it is gained by experience. It is information that is used and shared to achieve the organization’s objectives.

NOTE 2 Organizational knowledge can be based on:

a) internal sources (e.g. intellectual property; knowledge gained from experience; lessons learned from failures and successful projects; capturing and sharing undocumented knowledge and experience; the results of improvements in processes, products and services);

b) external sources (e.g. standards; academia; conferences; gathering knowledge from customers or external providers).

Este é um detalhe de grande importância porque nunca antes, o conhecimento e a sua gestão tinham feito parte nuclear de uma norma internacional para garantir a qualidade de produtos e serviços.

Como se interpreta este novo requisito? Há que deixar claro que esta cláusula não é uma norma para a gestão de conhecimento, nem implica a obrigação de ter um sistema de gestão do conhecimento. O que ela faz é exigir que as organizações tenham em conta o conhecimento necessário para garantir a qualidade dos bens e serviços produzidos. Portanto, o que se exige é a identificação e a gestão do conhecimento da organização para garantir o funcionamento dos seus processos e alcançar a conformidade dos seus produtos e serviços.

Concretamente, são especificados dois grandes objetivos relacionados com o conhecimento organizacional:

  1. Identificar o conhecimento crítico que é necessário gerir, manter e disponibilizar
  2. Estimular a aprendizagem organizacional e a aquisição de conhecimento futuro

Todos nós sabemos que quanto mais conhecimento uma pessoa tem, melhor é o seu desempenho, aumentando assim as suas hipóteses de alcançar objetivos. De igual modo, um maior conhecimento organizacional aumenta a eficiência e, portanto, melhores resultados são alcançados. É precisamente por isso que surge esta exigência na nova versão da norma. Tudo isto significa que é a própria organização a principal interessada em promover a gestão de conhecimento. Das duas notas que acompanham a cláusula, resultam referências diretas e claras a diferentes elementos de gestão de conhecimento, tais como:

  1. Ter um sistema para garantir que os empregados aumentam o seu conhecimento, facilitando a aprendizagem através da experiência e da reflexão, por exemplo mediante a utilização de lições aprendidas que retroalimente os procedimentos de casos de sucesso e fracasso
  2. Contar com um sistema que assegure a partilha de conhecimento através de processos de transferência e de câmbio, como por exemplo organizando comunidades de prática através das quais várias equipas ou sucursais de uma empresa partilham as melhores práticas ou desenvolvem standards
  3. Ter um sistema de proteção de conhecimento crítico para evitar a sua perda através de processos de retenção de conhecimento, incluindo mentoria, prevenindo que elementos fundamentais da estrutura ou em idade de reforma centralizem em si mesmos conhecimento valiosíssimo para a empresa
  4. Contar com modelos de auditoria da gestão do conhecimento, benchmarking e um modelo estratégico que permitam a identificação de conhecimento crítico necessário para garantir a qualidade dos produtos e serviços e um modelo de para a sua administração
  5. Ter um sistema para manter o conhecimento, sistematizando as experiências e o conhecimento tácito em bases de conhecimento inteligentes para reutilização, tornando-o disponível para quem e quando dele necessitam
  6. Ter um sistema para criar novo conhecimento através de processos de inovação, por exemplo incorporando momentos de reflexão, revisão e validação durante os projetos para gerar aprendizagem institucional

Estas novas exigências implicam uma grande mudança na abordagem à gestão do conhecimento porque, a partir de agora, é parte integrante do conjunto de requisitos de uma das normas internacionais mais difundidas. Assim, deixa de ser vista como “algo aconselhável para a organização” e passa a ser um elemento que visa demonstrar a melhoria contínua e “um requisito para obter um certificado de qualidade”.

Como se devem preparar os responsáveis da qualidade e de gestão de conhecimento para a próxima auditoria? A auditoria para a certificação da norma ISO 9001:2015 é realizada pela revisão do sistema de gestão da qualidade estabelecido para atender aos requisitos definidos pela norma. Para isso, as organizações que desejam certificar-se terão de implementar diversas metodologias e ferramentas de gestão de conhecimento, como as listados na tabela a seguir:

Tabela que relaciona ISO 9001:2015 com a GC

Quando a organização tiver implementadas estas situações, o cumprimento dos requisitos da norma e, por isso o processo de certificação, torna-se um procedimento simples.

Está provado que as organizações que implementaram iniciativas de gestão de conhecimento, obtêm impactos positivos nos seus resultados, embora esse efeito não seja imediato. Toda a organização que enfrenta a necessidade de adaptar o seu sistema à nova versão da ISO 9001, ou de o certificar pela primeira vez, terá que pensar sobre como cumprir com a nova exigência. Mas, ainda mais importante, é que terá a oportunidade de refletir sobre como gerar valor real para a organização – que é o que está na base da norma – e, assim, contribuir para a melhoria contínua com um novo elemento.

Nota: Texto originalmente publicado na newsletter da Catenaria e traduzido para português por Daniela Azevedo e Ana Neves.

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