Captura de Melhores Práticas. Ou Não.

Quando se fala de gestão de conhecimento fala-se quase logo de seguida da captura e documentação de melhores práticas.

Ora eu devo dizer que não me sinto muito confortável com esta perspectiva e abordagem indiscriminada. E esse desconforto vem da observação de como as pessoas e as organizações reagem a esse processo e a essas melhores práticas.

Primeiro aspecto com que não concordo: o termo “melhores práticas”.

Dizer que algo é uma “melhor prática” transmite a ideia de que:

  • não pode ser melhorada
  • deve ser seguida à risca
  • se aplica em todas e quaisquer circunstâncias.

Ora, nenhuma destas ideias poderia estar mais errada. Uma organização não só pode como tem obrigação de continuamente procurar melhorar as suas “melhores práticas”. Não o fazer pode significar a estagnação. E todos nós sabemos o que isso signifca no contexto económico em que nos encontramos.

Para além disso, uma “melhor prática” pode deixar de o ser se não for aplicada no contexto certo e/ou se não for devidamente adaptada para se ajustar às diferentes circunstâncias.

Tendo isto em consideração, eu prefiro falar em “boas práticas”. Uma pequena alteração que transmite uma ideia bem diferente e produz uma atitude bem distinta por parte de quem as recebe.

Se não concordo com o termo “melhores práticas” também não concordo com a ideia de que estas devem ser documentadas.

A ideia de documentar boas práticas (ou melhores práticas, se não concordarem comigo e pensarem que assim se devem chamar) assume que as boas práticas podem ser documentadas, o que se por sua vez assume que as organizações sabem que as há e quais são, e que as pessoas responsáveis pela sua execução são capazes de as descrever (OK, se gravarmos alguém a executá-las estaremos a documentá-las, mas não é bem a isso que as pessoas se referem quando falam em capturar e documentar boas práticas).

Daquilo que tenho observado, nem as organizações costumam saber quais são as boas práticas, nem as pessoas que as executam são capazes de as descrever.

Para além disso, a vantagem de documentar boas práticas pressupõe que estas seriam depois repetidas noutras áreas da organização ou que prevaleceriam se a equipa por elas responsável ficasse indisponível.

Também aqui noto um grande optimismo e nível de ingenuidade. Por vários motivos:

  • não basta capturar as boas práticas – é necessário garantir que ficam acessíveis a quem delas precisa na altura em que são precisas e, de preferência, sem que as pessoas tenham de ir à sua procura
  • o que é hoje uma boa prática pode amanhã já não o ser – as organizações esquecem-se de criar processos de manutenção das boas práticas recolhidas, o que significa que se perde confiança no que foi capturado e, mais importante do que isso, que a captura das boas práticas foi, na verdade, contra-producente
  • a forma como alguém acolhe e adopta uma boa prática disponível num vulgar repositório é muito menos aberta do que se esta fosse passada por observação da prática e dos resultados (ver nota final).

Por tudo isto, sugiro que as organizações pensem muito bem antes de apostar na captura de boas práticas. São actividades que requerem, geralmente, um grande investimento de tempo, pessoas e dinheiro, e que não costumam justificá-lo.

É claro que há excepções, isto é, casos em que vale a pena fazer essa recolha (se uma organização pretende adicionar essa prática ao leque de serviços que oferece aos seus clientes, por exemplo). No entanto, se assim for, sugiro também às organizações que sejam um pouco mais criativos e que considerem várias formas de fazer essa captura antes de tomarem uma decisão. Considerem o uso de narrativas (como sugere Dave Snowden) ou ferramentas sociais (wikis, por exemplo).

Nota final:

Não posso deixar de dizer que acredito na boa vontade das pessoas. Não sou daquelas pessoas que considera que os colaboradores de uma organização estarão sempre contra esforços de melhoria. Aliás, e a propósito disso, por favor não deixem de ler um texto muito interessante com o título “How to Counter Resistance to Change”. A melhor frase deste texto, e também a frase que melhor descreve a opinião do autor, é a seguinte:

“people don’t resist change, they resist being changed”

9 comments

  1. Pedro Freire 5 Maio, 2009 at 00:14 Responder

    Eu conheço o termo “melhores práticas” da consultoria de gestão (tradução do inglês “best practices”) onde é usado para designar padrões de gestão/organização que reconhecidamente produzem bons resultados em áreas de actividade específicas e/ou mercados específicos.

    Normalmente a ideia é comparar a maneira como se fazem determinadas actividades numa organização com os padrões de sucesso conhecidos no mesmo mercado/área de actividade.

    Pressupõe-se que esta avaliação seja crítica e objectiva, tendo em conta o contexto a que se dirige, pois de outra forma será provavelmente um tiro no pé.

    A recolha de melhores práticas olhando apenas para dentro da organização em vista é necessariamente restritiva e pode ser muito influenciada por conflitos internos.

    • Ana Neves 5 Maio, 2009 at 14:46 Responder

      Pois é, Pedro, o termo vem do “best practices” em inglês, com que também não concordo, exactamente pelas mesmas razões 😉

      Não tenho a ideia de que as boas/melhores práticas sejam essencialmente usadas para comparação com outras organizações (apesar de, claro, o poderem ser). Mas concordo consigo quando diz que há limitações na sua utilização meramente interna à organização. Mas o mesmo acontece sempre que uma organização tenta fazer algo sem olhar para outras, quer seja para absorver boas práticas como para evitar práticas menos bem sucedidas.

  2. José Dinis 6 Maio, 2009 at 14:08 Responder

    Naturalmente, concordo que o conceito de “melhor prática” será mais adequado designar-se “boa prática, muito embora uma “melhor prática” possa considerar-se como tal num dado momento e num determinado contexto, podendo ser substituída por outra “melhor prática”, quando a prática anterior veio a garantir uma melhoria de algo.

    E para reforçar a ideia da Ana Neves, que «Uma organização não só pode como tem obrigação de continuamente procurar melhorar as suas “melhores práticas”», refiro o ditado popular de que “o óptimo é inimigo do bom”, complementando com “mas melhor é possível” [isto da minha autoria], onde se pressupõe que as organizações devem ter práticas para satisfazer o princípio da “melhoria” permanente, nos seus mais diversos aspectos, para garantir a sua sustentabilidade, num ambiente de competitividade global.

  3. Nelson Gama 13 Maio, 2009 at 23:40 Responder

    A expressão anglo-saxónica “best pratices” (melhores práticas) talvez venha de serem as melhores práticas conhecidas até ao momento, o “top” das boas práticas, clarificando que são as que devem ser usadas… Por exemplo no ITIL, o facto de se reger por um conjunto de “best pratices” não invalidou que se tenham revisitado e melhorado algumas práticas numa versão mais recente, continuando a ser “the best” 🙂

  4. John Tropea 16 Abril, 2010 at 01:10 Responder

    It turns out this comment got too lengthy so I may use it as a draft for a future blog post…thx for providing the inspiration and the space to draft my thoughts…your comment box allowed me to capture what I’m thinking right now, before I lose it.

    Agree we have different contexts, local sensitivities, things change quickly, etc…so a practice often doesn’t transfer over very well…this is magnified when applying a practice across companies.

    And yes if we call it “good”, rather than “bad” then people will have a different mindset when they apply them…as language is a very powerful thing, and we blindly trust labels, especially when they come from considered experts.

    “I heard this is a good practice, we should try and apply it here”

    “This is the best practice, please follow it”

    “This is a common practice, so I’m not sure if it will apply to us, but let’s have a look”

    But changing the label still considers that it’s a good idea to document them. I agree. It’s the applying elsewhere part that becomes dangerous.

    Rather than best practices, just have many practices, that also always evolving.

    Also agree that knowing what not to do is important. (lessons learned). As long as this is documented so it comes past your radar like subscribing to a lessons learned blog…people don’t decide it’s time to learn some lessons, and head over to a database. And people are more motivated to share lessons in a blog, as it’s more engaging to have an audience and dialogue. Plus it becomes the bloggers interest to keep it updated.

    The only exception may be in stable or routine environments (as shown by the cynefin framework), but still we need to be able to improvise or make some local decisions…as the world is complex.

    Whenever we talk about good practice I think we should talk about continuous improvement in the same breathe. But not only improving what we are doing, but how we are doing it. We want to be forward thinking.

    A helper is the style and format in which you document and update these practices, and the red tape involved. A post by Nancy Dixon

    http://www.nancydixonblog.com/2010/03/collective-intelligence-the-eradication-of-smallpox.html about WHO eradicating smallpox via agents in the field applying what they learn daily as what should be practiced rather than the top-down suggested practice, is a great example of perpetual practice. In this day and age if reporting was done with a blog, then conversations in the blog post, then the practice can be updated in the wiki…very agile.

    In this respect it’s only good practice for now.

    But still this is within a context. If you read Nancy’s post, you will see that context required a different sort of needle in vaccinating in different localities/situations.

    So again, it’s good to read about a contextual practice just as background for your context.

    Of course companies like a one-size-fits-all approach as it’s easier to manage and control the risk and efficiency…but this is a fallacy…you actually risk effectiveness and agility…let local people make decisions.

    Even a janitor’s routine work needs some improvising

    http://www.wagnercg.com/sitemax/Default.aspx?tabid=90

    http://www.smartplanet.com/business/blog/business-brains/these-days-who-is-not-a-knowledge-worker/6132/

    We are all knowledge workers and think and improvise, use heuristics, rules of thumb, and workarounds to get things done…humans are great at self-organising themselves around exceptions to processes, and improvising where processes don’t exist.

    What do you think the difference is between a documented process/procedure and a practice?

    To me a practice exists as I have to work around the procedure, or perhaps the situation is too complex and contextual that all you can have is practices…but each of them suits a context, so beware of making them globally concrete.

    At work our document control team follow a procedure in transmitting documents for internal and external review. This is paramount for reasons of revision control, risk (legal action), proof (timestamped and sent), etc…The procedure goes into detail of engineers marking up documents, using the correct metadata, getting signatures, making copies, filling out an instruction sheet…you know the routine process.

    But procedures are not clairvoyant, they cannot possibly cater for every context. The document controllers often have to cater to the different way clients run their projects.

    Once I filled in for a document controller, and after reading the procedures thought I knew how to do the job. I was wrong. The person I was filling in for showed me a spreadsheet that contained requests by clients in how to run part of the document control process. One client didn’t do hard copies, the other needed prints on yellow paper, one need two signatures…this list just went on.

    In that job the procedures are one thing, but the practice is another…and the practice is numerous for each context.

    One thing they could do is use a blog to communicate these things, and a wiki rather than a spreadsheet…this way all these practices are perpetually updated.

    So how can we conclude?

    Let’s just be aware of practices, but not have the need to make them global.

    Lessons are just as important

    Frameworks are powerful, they are more like jazz music as you can experiment, apply thinking in new ways, they let you as a human be creative, rather than following a process.

    http://rossdawsonblog.com/weblog/archives/2009/09/there_is_no_suc.html

    Heuristics, rules of thumb

    • Ana Neves 5 Maio, 2010 at 10:33 Responder

      John, thank you ever so much for your comment.

      I love the way it ends:

      “Let’s just be aware of practices, but not have the need to make them global.

      Lessons are just as important

      Frameworks are powerful, they are more like jazz music as you can experiment, apply thinking in new ways, they let you as a human be creative, rather than following a process.”

      I soooo agree with you. It is really important that organisations find ways (written, verbal ou by observation) of spreading practices (good, best, common, whaveter) so that become known throughout. That is the only way they can be challenged, improved, revised. That is the only way, organisations can build a common language that allows them to grow and continuously improve.

  5. Fernando Goldman 5 Maio, 2010 at 02:40 Responder

    Prezada Ana

    Gostaria de contribuir para a discussão sobre “melhores práticas” com uma abordagem um pouco diferente do usual.

    Acredito que seja mais fácil entender o que vou expor, olhando para o modelo do link a seguir:

    http://knol.google.com/k/-/-/3pcurlqmmzwmr/nr86iw/modelodinamicaconhecimentoorganizacionalingles.jpg

    Porém, para os que não estão familiarizados com este tipo de representação, não há problema. Não é preciso olhar o modelo.

    É verdade que quando se fala de Gestão de Conhecimento, para muitos fala-se da captura e documentação de melhores práticas.

    O termo “melhores práticas” é característico das metodologias de Gestão de Projetos, embora não seja propriedade exclusiva desta área. A idéia de em grandes projetos se fazer ao final de diferentes etapas uma reunião de melhores práticas ou de lições aprendidas, um eufemismo para erros detectados, é certamente salutar.

    Não creio que haja por trás da expressão melhores práticas as ideias de que elas não possam ser melhoradas, devam ser seguidas à risca ou se apliquem em todas e quaisquer circunstâncias.

    Ao contrário, toda organização, seja uma empresa ou qualquer outro tipo de arranjo organizacional, se caracteriza pela adoção de rotinas, como bem pregam os neo-schumpeterianos. Estas rotinas são tanto estáticas como dinâmicas.

    Quando falamos em metodologias que adotam melhores práticas, estamos falando de rotinas estáticas e em processos de melhoria contínua, os quais, através de inovações incrementais surgidas em processos de tentativas e erros, buscam constantemente identificar as rotinas (práticas) mais adequadas, detectadas até o presente momento.

    Através de rotinas de melhoria ? por exemplo, fazer reuniões de melhores práticas? a empresa reexamina suas rotinas estáticas constantemente e procura aperfeiçoá-las, em um loop que lida fundamentalmente com conhecimentos explicitados e informações registradas (conteúdos), sem contudo alterar as estruturas de conhecimento que predominam na organização.

    Em empresas que alcançam a eficiência adaptativa, rotinas evolutivas possibilitam a alteração das estruturas de conhecimento em um outro loop que lida fundamentalmente com conhecimentos tácitos.

    Assim, é possível perceber que a dita “busca das melhores práticas” é muito importante para a eficiência da organização, mas há outras ações , menos explícitas, que são importantes para a eficácia da organização.

    Forte abraço

    Fernando Goldman

    • Ana Neves 5 Maio, 2010 at 10:26 Responder

      Fernando, muito obrigada pelo seu comentário.

      O que o Fernando descreve é o cenário ideal, isto é, as “melhores práticas” serem usadas como ponto de partida para reflexões periódicas que busquem a inovação e a aprendizagem colectiva. No entanto, isso não é o que tende a acontecer. Por falta de tempo, de sensibilidade, de processos, etc., as organizações não têm por hábito repensar as suas práticas (melhores ou não) pelo que a utilização da expressão “melhores práticas” dá uma falsa sensação de segurança que acaba por ser prejudicial.

      Mas, Fernando, tem toda a razão no que diz: idealmente seria assim.

Leave a reply