Apple

A APPLE é um caso histórico em que o Conhecimento sempre foi diferencial competitivo, como em outras empresas da área de Tecnologia. Este artigo explora as relações de poder e os conflitos estratégicos por que a empresa passou ao longo da sua história. Este estudo de caso foi desenvolvido em conjunto com Fátima Ferreira Russo, no Programa de Mestrado em Administração da UFF.

Introdução

As inovações tecnológicas e as transformações sociais dominam a sociedade contemporânea, mudando de maneira marcante as formas de produção e a vida das pessoas. Segundo Motta, em seu livro Transformação Organizacional [1997:xiii], “a mudança aparece não só como inevitável mas necessária à sobrevivência”. As empresas estão no centro das principais transformações neste final de século XX, seja pela oferta de bens e serviços revolucionários, como pelo jogo de interesses econômicos. Como ressalta Motta [1997: xiii], “chegou-se ao sistema de produção em que tudo é vulnerável, possível e imprevisível”.

Para as empresas brasileiras, principalmente na área de Informática, as organizações norte-americanas têm sido um modelo inspirador. Isso se deve, em parte, ao fato de o mercado de Informática brasileiro ter sido fortemente influenciado, desde seu início, pela presença de multinacionais de origem norte-americana. Por outro lado, se deve a uma certa tendência “evolucionista” do pensamento administrativo nas empresas brasileiras do setor. Segundo Motta [1997:4], “ao aceitar o evolucionismo, os modelos de progresso administrativo viam a empresa em busca permanente de maior eficiência e qualidade… Mas, em essência, inovar seria, antes de tudo, um processo adaptativo a padrões da modernidade ocidental”.

A Apple Computer Inc., sediada em Cupertino, Califórnia, nos Estados Unidos, é uma empresa que tem sido exemplo e modelo de gerenciamento muito citado no meio empresarial, tanto brasileiro quanto americano, como um verdadeiro ícone da área de Informática. Assim, procurar iluminar o entendimento da dinâmica organizacional que traçou a trajetória da Apple é útil, na medida em que pode ajudar a esclarecer os pontos fracos e os pontos fortes de seu modelo de gestão. Pode, por outro lado, ajudar a entender a natureza dos dilemas organizacionais que outras empresas, que adotem modelos similares, venham a enfrentar. E ainda, a análise do caso da Apple pode ajudar a lançar um pouco de luz sobre as peculiaridades da indústria de Informática em si, que é o setor empresarial hoje onde a mudança organizacional e a inovação talvez sejam mais pungentes.

Linhas de análise da dinâmica organizacional

Os analistas no mercado de tecnologia americano apontam normalmente três explicações gerais para o caso da Apple. Uma está associada a questão política da luta de poder entre Steve Jobs e John Sculley, executivos principais da companhia durante de 10 anos. A segunda se baseia numa visão da Apple presa a uma armadilha psíquica. A terceira explicação está ligada a uma visão equivocada do futuro do mercado.

Anteriormente grandes aliados, a relação entre Jobs e Sculley deteriorou-se da pior forma possível. Em seu livro Odisseia [1987], Sculley retrata Jobs como uma pessoa excelente tecnicamente, mas sem habilidade gerencial, principalmente no trato com as pessoas. Segundo Sculley, a saída de Jobs da Apple se deu não por vontade dele, Sculley, mas a pedido dos próprios subordinados de Jobs. Por outro lado, na entrevista que concedeu a Jager e Ortiz, para o livro In the company of giants [1997: 23], Jobs acusa Sculley de ter corrompido a Apple, que teria deixado de ser uma empresa com a missão de “fazer os melhores computadores do mundo” para a de “fazer dinheiro”. Segundo Jobs, muitas pessoas saíram junto e depois dele da Apple por não concordarem com a visão de Sculley, e essa evasão de talentos teria sido a grande causa dos problemas da empresa.

A segunda explicação para os problemas da Apple indica um caminho psicológico mais sutil. Aparentemente a Apple teria ficado presa na “armadilha do melhor”. Acreditando que tinha a melhor visão, os melhores produtos, os clientes mais fiéis e a melhor equipe de criação, os executivos da Apple teriam subestimado repetidas vezes as mudanças de mercado. A indicação desse tipo de arrogância intelectual seria mais emblemática em Jean-Louis Gassee do que em qualquer outro executivo da empresa. Sua influência durante os anos da administração Sculley, que não tinha formação em Informática, teria levado a vários erros estratégicos, principalmente na questão decisiva de licenciamento de software.

A polêmica do licenciamento do software do Macintosh, que envolve a visão equivocada do futuro do mercado, está no cerne da terceira explicação em debate para a dinâmica da Apple ao longo dos últimos anos. Indo diretamente contra a resistência de Gassee a liberar o licenciamento dos produtos Macintosh para o mercado, há um memorando de ninguém menos que Bill Gates, fundador da Microsoft, datado de 25/06/1985, numa incrível previsão de 13 anos atrás. Escreveu Gates que “a Apple firmou posição como líder em computadores pessoais…Essa posição implica em criar um padrão de tecnologia…Mas nenhuma companhia de computadores pode criar um padrão sem suporte independente…A indústria chegou agora a um ponto em que é impossível para a Apple criar um padrão sem suporte de outros fabricantes…Assim, a Apple deveria licenciar a tecnologia Macintosh para companhias americanas e européias…” Ao optar então por manter sua arquitetura “fechada”, em parte por acreditar ser ela “superior”, e em parte por falta de articulação no nível estratégico da empresa, a Apple teria se auto-confinado a uma fatia muito estreita de mercado.

Para subsidiar o entendimento dos argumentos que serão desenvolvidos, é apresentado a seguir um resumo dos principais fatos da história organizacional da Apple.

Resumo do contexto histórico

Steven Jobs e Stephen Wozniak fundaram a Apple em 1976, em Santa Clara, California. A idéia inicial era vender placas de circuito integrado, mas passou a ser vender microcomputadores após o sucesso inicial. Na garagem de Jobs foi construído o Apple I, já incorporando as características de amigabilidade e objetivando o mercado de pequenos computadores. Em 1977, Wozniak aperfeiçoou o produto, acrescentando um teclado, monitor colorido e outros recursos, batizando-o de Apple II. Foram vendidas 130 mil unidades até 1980. Quando a Apple abriu seu capital no mercado, em 1980, as vendas totalizavam US$ 117 milhões.

Em 1983 , Wozniak saiu da Apple e Jobs trouxe John Sculley para substituir Mike Markkula como presidente da empresa. Esse ano foi o fracasso do Apple II e da linha Lisa, mas em 1984 a empresa seta o seu marco definitivo com o revolucionário Macintosh. O mote de publicidade era “o computador para o resto de nós”, que opunha a facilidade de uso do Mac à interface antiquada da rival IBM. Em 1986 a Apple faz um novo lançamento, direcionado ao escritório comercial médio, com o Mac Plus e a impressora LaserWriter.

Um marco negativo na história da empresa foi a perda da ação legal contra a Microsoft e a HP, em 1992. A Apple reinvindicava na Justiça direitos sobre o estilo (“look and feel”) da sua interface. Em 1993 houve uma queda de 84 % nos lucros, e a empresa fez diversas alterações internas. John Sculley foi substituído por Michael Spindler e Mike Markkula voltou como chairman.

Em 1996, após mais um ano de perdas significativas, Michael Spindler foi substituído por Gil Amelio, um executivo vindo da National Semiconductors com a missão de reestruturar novamente a empresa, mas a Apple continuou em crise com o seu mercado. Após perdas significativas, seu CEO, Gil Amelio, foi substituído recentemente. A empresa trocou de agência de publicidade e de relações públicas e procura um novo líder. Vários executivos do primeiro escalão foram substituídos. Uma nova linha de software está sendo anunciada. Linhas de hardware deficitárias foram desativadas. Enfim, a empresa busca um rumo e tem deixado apreensivos seus clientes, fornecedores e parceiros.

Em números do final de 1997, a Apple teve US$ 7 bilhões em vendas neste ano, mas com um prejuízo de US$ 1 bilhão. Atualmente, a empresa possui cerca de 10 mil empregados em suas manufaturas na Irlanda e em Singapura, nos centros de distribuição nos Estados Unidos, Europa, Canadá, Australia, Singapura e Japão, nos centros de desenvolvimento nos Estados Unidos, Irlanda, Japão e China, e em sua sede, em Cupertino, California. A Apple possui representação em 140 países. Analistas estimam a participação da Apple no mercado em cerca de 4 %.

A situação atual é desfavorável à Apple. Seu sistema operacional ainda era monousuário, enquanto o Windows 95 da Microsoft é multitarefa. O endereçamento do Mac até pouco tempo era de 16 bits, enquanto o do Windows 95 é de 32 bits, o que permite maior capacidade e velocidade de processamento. Além disso, hoje o software da Microsoft é mais estável e livre de falhas do que o hardware e software da Apple. Por isso, no centro da tentativa de virada da empresa está a implementação de um novo sistema operacional.

Historicamente, a medida que o mercado cedeu aos apelos de marketing da dupla Microsoft/Intel, a Apple insistiu em sua arquitetura particular de hardware a partir de chips Motorola. A princípio isso cindia o mercado em duas opções claramente diferentes. No mundo PC, abundam os clones, os equipamentos montados com componentes de diversos fornecedores, em geral apoiados em processadores Intel. No mundo Mac, havia apenas a Apple e sua linha de produtos baseada em processadores Motorola. Os PCs sempre foram mais baratos que os Apple, embora no início fossem muito menos confiáveis.No entanto, com o passar do tempo e o aumento da qualidade dos clones, a linha dos PCs chegou a superar em performance e em confiabilidade (vide a linha de notebooks) os produtos Apple. Isso para não falar da escalabilidade, pois hoje as opções de performance e capacidade são muito mais variadas na plataforma Intel / Microsoft do que no mundo Apple.

Contrastando com a estratégia de mercado da Microsoft, a Apple teve vários problemas de foco, de distribuição e de desenvolvimento de produtos. A percepção do mercado sempre foi de que a solução Apple, em software e hardware, era criativa. No entanto, a empresa não renovou seus produtos com a dinâmica suficiente perante a onda terceirizante da década de 80. A Apple até bem pouco tempo produzia internamente a maioria dos componentes de sua arquitetura de hardware e software. A diversidade da linha de produtos revelou-se um outro problema de custos, enquanto a empresa lutava com a fabricação nem sempre lucrativa de desktops (Mac), notebooks (Powerbook) e palmtops (Newton).

Por outro lado, o nicho essencial da Apple sempre foi a área de Design e Desktop Publishing. Enquanto a Microsoft espalhou seu sistema operacional Windows pelos desktops do mundo do escritório e das casas, indiscriminadamente, e avançou no mercado corporativo com softwares de rede como o Windows for Workgroups e, mais tarde, com o Windows NT, a Apple continuou servindo especializadamente sua legião de fãs, composta principalmente por usuários ligados às artes gráficas.

Resta hoje, 10 anos depois, apenas a mística da criatividade, uma sombra do brilho inicial quando do lançamento do Macintosh. Essa mística está até hoje associada ao nome de seu fundador: Steven Jobs.

A sucessão na Apple

Steven Jobs está associado a Apple, embora nem sempre tenha estado lá. Após um período de crescimento inicial, e com a abertura do controle acionário, Jobs começou a encontrar problemas e oposições à sua gestão no meio da década de 80. Considerado por todos como um gênio da indústria, mas por muitos como um temperamento difícil, Jobs enfrentou uma série de desgastes. Por volta de 1985, foi substituído no comando da Apple por John Sculley, um executivo vindo de uma passagem brilhante pela Pepsi Co.

A missão de Sculley era redirecionar o marketing da Apple, aumentando seu market share, reposicionando a empresa no mercado de Informática e aumentando os lucros. Seu foco de ação estava fora da Apple, no mercado, nos parceiros e na concorrência.

Foi o próprio Steven Jobs, que tinha fundado a Apple aos 21anos de idade em 1976, junto com Stephen Wozniak, quem trouxe Sculley para a Apple em 1983. Após uma guerra de poder, Jobs saiu e foi criar a Next, uma empresa de hardware e software inicialmente, e que mais tarde se transformou na Next Software Inc., em 1993, especializada em software básico.

A sucessão de executivos principais na Apple foi muito acentuada ao longo dos últimos anos. Mike Scott (1977 a 1981), Mike Markkula (1981 a 1983), Steve Jobs (em diferentes períodos ao longo dos anos 80), John Sculley (1983 a 1993), Michael Spindler (1993 a 1996) e Gil Amélio (1996 a 1997) se sucederam na posição de CEO e Chairman of the Board na Apple.

Após muitas reviravoltas, a Apple resolveu chamar Jobs de volta, adquirindo a Next Software Inc por US$ 400 milhões em dezembro de 1996. Aos 43 anos de idade, Jobs é considerado ainda um visionário no mercado de Informática e a melhor opção para tentar uma nova virada na empresa. A Next detém tecnologia útil para a criação de um novo sistema operacional para os computadores Apple. Steve Jobs atuou como assessor de Gil Amélio durante alguns meses, mas acabou assumindo interinamente a posição de CEO, em julho de 1997, após sucessivos quadrimestres de resultados negativos. Oficialmente, no entanto, a Apple continua a procura de um novo executivo principal.

A Apple vista como sistema de poder

A Apple como qualquer organização que participa do mercado não pode deixar de possuir internamente as intrigas do poder. Nem sempre a luta pelo poder é por dinheiro. Muitas vezes é pelo poder social ou político. O jogo do poder na Apple aparece através das divergências entre John Sculley e Steve Jobs durante o período que participaram da diretoria da empresa.

John Sculley veio para a Apple atendendo a inúmeros apelos de Jobs tanto financeiros quanto emocionais. Apesar de ser um alto executivo da Pepsi Co., se sentiu atraído pelas diversas vantagens oferecidas por Jobs. Jobs ofereceu a Sculley US$ 1 milhão de dólares de salário; bonificação de US$ 1 milhão para se juntar a Apple; uma casa igual a que tinha na península norte da California e ações da Apple.

Com referência ao lado emocional, Sculley diz em seu livro Odisséia [1987] que se encantou pelo jeito despojado de Jobs e pela informalidade que presenciou nas suas visitas a Apple. O seu mundo na Pepsi era completamente diferente. O ritmo era alucinante e sem espaço para qualquer engano. A cobrança era constante e ameaçadora. O poder do cargo que ocupava estava sempre em jogo e dependia sempre de uma idéia maravilhosa para resolver problemas.

Assim que iniciou suas atividades na Apple, Sculley sentiu-se diferente. Em pouco tempo Jobs e Sculley se tornaram amigos íntimos e partilhavam todos os assuntos. Havia uma combinação estratégica perfeita, já que Jobs dominava a técnica e por sua vez Sculley dominava as áreas financeira e administrativa. Havia no início uma perfeita interação no setor profissional e pessoal entre Jobs e Sculley.

Apesar de haver um comitê diretor na Apple para as deciões mais importantes, o que se viu, durante o período no qual Jobs e Sculley atuaram juntos, foi uma total liberdade nas tomadas de decisão. Uma das dessas decisões importantes foi a execução de uma campanha para o lançamento do Macintosh, que envolvia cerca de 15 milhões de dólares. Nesta época o poder estava centrado igualmente nos dois executivos. Mesmo sendo Jobs de temperamento difícil, assim dito por todos que conviviam com ele, possuía um carisma pessoal. Devido à sua genialidade encantava a todos, inclusive ao próprio Sculley.

Na Apple o aspecto formal da hierarquia e dos níveis de poder não era tão marcado. Aparentemente, pode-se dizer que não havia configurações concretas visíveis de poder. As pessoas, independentemente do cargo que ocupavam, possuíam acomodações muito simples. Outro fator, indicador de poder de um indivíduo é a dificuldade de acesso a ele.

Na Apple o acesso a qualquer membro da diretoria era muito fácil e sem formalidade. Segundo B. Milioni, em seu livro Comportamento Gerencial [1990], a dinâmica do poder não é prerrogativa do indivíduo competente. “Competência” e “poder” podem ser complementares, mas têm personalidade autônoma.

Na Apple pode-se dizer que havia um enorme jogo de poder pessoal. Sculley nutria uma grande admiração por Jobs e este nutria um amor pela Apple sem precedentes. Quando Sculley fez 1 ano de Apple, Jobs fez um jantar surpresa para ele e declarou o seguinte: “Todos aqui sabem que eu adoro a Apple mais que tudo na vida. E os dois dias mais felizes para mim foram quando o Macintosh começou a ser entregue aos clientes e quando J. Sculley concordou em vir para a Apple”. Nesta época, Jobs e Sculley saíram juntos na capa da Revista BusinessWeek .

Como não havia uma definição clara do campo de atuação de cada um deles. com o passar do tempo, a situação foi ficando difícil. A responsabilidade perante o board, era de J. Sculley. Começaram a haver divergências entre eles, e Sculley se sentiu ameaçado com as intromissões sucessivas de Jobs na parte administrativa. Jobs começou a querer atuar como gerente e não só mais como o visionário criador de produtos. Os gerentes reclamaram da interferência de Jobs em seus trabalhos e, mesmo após sucessivas conversas de Sculley com ele, o quadro não mudou. O clima político se tornou insustentável. Sculley então convocou uma reunião de diretoria para pedir a saída de Jobs da vice-presidência e mantê-lo como diretor. O board aceitou a proposta de Sculley, mas Jobs ficou revoltado e deixou a Apple.

Certamente esta briga pelo poder afetou a unidade da Apple como organização. A tensão política chegou a um ponto que as duas principais divisões da empresa, que eram a APPLE e a MACINTOSH, se empenhavam nos objetivos de cada seção como se não fizessem parte de um todo. É de se espantar a incompreensão dos executivos sobre o grande risco a que se expõem quando o poder mal dimensionado se incorpora na cultura organizacional. A sensação do poder assim como a sedução é carregada de prazer, o que por si só é o suficiente para neutralizar a maior parte do que se convenciona chamar “razão” (consciência plena dos atos). Infelizmente, não há como avaliar o quanto uma organização pode perder com uma crise interna de poder. Mas no caso da Apple essa perda foi significativa.

A Apple vista como armadilha psíquica

Uma outra alternativa, para a análise da dinâmica organizacional da Apple, é a dos aspectos psicológicos do comportamento dos seus principais executivos, principalmente Sculley e Jobs. Jonh Sculley conta , em seu livro Odisséia [1987], diversos aspectos emocionais e comportamentais de sua passagem pela Apple. Jobs concedeu uma entrevista recente, publicada no livro In the Company of Giants [1997], em que comenta de sua mágoa em relação a Sculley e suas visões divergentes sobre a empresa. Esse material bibliográfico, além de outras publicações recentes, fornecem uma base para traçarmos a perspectiva psicológica desses personagens cruciais nas transformações da Apple.

Gareth Morgan , em seu livro Imagens da Organização [1996], discute aspectos interessantes da Psicologia na Administração, e das empresas como armadilhas psíquicas que condicionam o pensamento e o comportamento de seus integrantes. Utilizando a metáfora da “caverna de Platão”, Morgan alerta para o fato de que muitas vezes estamos aprisionados em armadilhas de raciocínio.

Nas empresas essas armadilhas são frequentes e evidentes. A “armadilha do sucesso”, por exemplo, já apanhou algumas multinacionais prósperas especializadas em mainframes quando do surgimento da microinformática. Esse foi o caso notório da IBM na década de 80. Essas e outras armadilhas cognitivas contribuem para que muitas empresas desenvolvam culturas organizacionais que as impedem de lidar com seu ambiente lucidamente.

Isso se dá, em certa medida, porque muito do cotidiano das organizações nada mais é do que a materialização de inquietações de seus membros, muitas vezes inconsciente. Nós tendemos, pela via da racionalidade e da objetividade, a subestimar a influência do insconsciente. Eduardo Giannetti, em seu livro Auto-Engano [1997], ressalta que “o fulcro do auto-engano está na capacidade que temos de sentir e de acreditar sinceramente que somos aquilo que não somos. Sem esta fé cega e injustificada, muitos fracassos e tragédias teriam sido evitados. Mas, sem ela também seria impossível a aposta no imponderável, que resulta na obra de gênio ou na introdução do novo na vida social.”

Nessa linha, ao acreditar que estava fazendo “computadores para um mundo melhor”, Steve Jobs liderava a Apple na criação de um novo conceito, um novo produto, uma nova indústria, com a criação dos computadores pessoais. Isso trouxe uma revolução até então impensável sob o manto dos mainframes IBM e Unisys. Sem essa visão, ainda que contrariada a princípio por todas as evidências, dado o controle de mercado exercido pelas gigantes do setor de então, nem a Apple, nem a Intel, nem mesmo a Microsoft, teriam florescido.

Por outro lado, ao acreditar injustificadamente que o sistema Macintosh era insuperável, ao zombar das primeiras versões do Windows na Microsoft, os executivos da Apple, Jean louis Gassée a frente, caíram na armadilha do auto-engano. Gassée, um eterno adversário do licenciamento do software do Macintosh, chegou a afirmar, segundo Carlton [1997:53] que “ninguém nunca vai nos alcançar em interfaces gráficas para usuários”. Isso parece parece inacreditável hoje, haja visto até mesmo o fracasso da Sony com o Betamax contra o VHS na área de video cassetes, que era um caso bem conhecido por todos na Apple. No entanto, como lembra Giannetti [1997: 62], “o fato é que se todos os empreendedores potenciais agissem como calculistas prudentes, e só fizessem novos investimentos quando estivessem de posse de tudo aquilo que precisam para estarem racionalmente seguros de que não perderão suas apostas, o ânimo empreendedor definharia e a economia estaria em séria depressão…A cegueira protetora do empreendedor filtra a incerteza e exacerba o brilho da realização.” A decisão de ir por este ou aquele caminho não nasce, no mais das vezes, do exame lúcido das evidências apenas, mas é movido também pelas forças do inconsciente de cada um.

Para Freud, o inconsciente é criado na medida da repressão dos desejos. Para viver em harmonia na civilização, o ser humano precisava moderar e controlar suas pulsões. Assim sendo, insconsciente e cultura tem ligações profundas. Para entender a cultura organizacional pode ser preciso buscar o sentido oculto das inquietações e interesses das pessoas que ali trabalham. Para Freud, Jung e outros psicanalistas, as pessoas vivem como prisioneiras de suas histórias pessoais, e sua liberdade pode advir da conscientização sobre como o passado influência o presente através do inconsciente.

Assim sendo, muito do comportamento em uma organização é busca por significado e permanência, onde fazemos dos nossos papéis a nossa realidade. Ao tentarmos gerir o mundo, buscamos gerir a nós mesmos. Buscamos tornar o complexo mais simples, dividir as coisas em componentes bem controlados. Criamos assim a ilusão de controle. Grande parte de nossa organização do mundo nos protege da idéia de que, na verdade, nos controlamos muito pouco. Assim, ao estabelecermos objetivos pessoais ou organizacionais, reafirmamos uma confiança no futuro. Ao investirmos nosso tempo e energia em um projeto, convertemos o tempo que passa em algo concreto e duradouro, numa luta da vida contra a morte.

Nessa linha, Steve Jobs renasceu diversas vezes ao longo de sua trajetória profissional. Após sair da Apple, fundou a NeXT e mais tarde a Pixar. Numa perspectiva histórica, ambas as empresas são bem sucedidas em seus diferentes ramos. A Pixar tem auferido lucros na área de animação, com sucessos mundiais no cinema como “Toy Story”. A NeXT acabou sendo adquirida pela Apple, que usará sua tecnologia na próxima versão de seu sistema operacional, numa transação altamente vantajosa para o próprio Jobs.

A volta para a Apple e a atuação como CEO interino podem ter um sabor de vitória para Steve Jobs. Sob sua administração, embora não exclusivamente desencadeado por suas decisões, a Apple voltou a ter lucro. Embora o futuro da empresa seja incerto, o retorno de Jobs conferiu novo alento ao clima organizacional, animou parceiros e clientes, e envolveu acordos e decisões estratégicas importantes, com desdobramentos futuros. Graças a Apple – mais do que a NeXT ou a Pixar – o nome de Jobs sedimentou-se na história da indústria de Informática, onde hoje é mais do que uma referência, é um mito. Através da Apple, Jobs transcendeu sua existência como mais um executivo do Vale do Silício, e se inscreveu na lenda de negócios americana.

Por essa relação psicológica profunda com a empresa, pode se explicar a decisão de seu retorno. Assim também, por outro lado, pode-se explicar a profunda mágoa que ainda demonstra em relação a Sculley.

Conclusões e perspectivas

Por se tratar de uma empresa em evolução, atuante no mercado, e em luta por melhores resultados, é muito difícil assumir posições definitivas, ter explicações cabais ou mesmo fazer previsões sobre o caso Apple.

A empresa está sendo dirigida por um board renovado. Jobs ocupa a posição de CEO interinamente, e nesta posição anunciou um acordo inesperado com a Microsoft em agosto de 1997. Por esse acordo, ambas as empresas vão licenciar seus softwares entre si, evitando os problemas jurídicos do passado. Além disso, a Microsoft suportará o seu pacote de automação de escritório Office, best seller de vendas, por pelo menos mais 5 anos. A Microsoft ainda pagou uma soma de cerca de US$ 100 milhões a Apple pelo acordo, e investiu mais US$ 150 milhões em ações sem direito a voto. Por sua parte, a Apple oferecerá o Microsoft Internet Explorer como browser nas versões do Macintosh de agora em diante, e abrirá à Microsoft acesso aos desenvolvimentos de seu novo sistema operacional , o Rapsody, que utiliza tecnologia orientada a objeto da NeXT. Naturalmente, ao ser anunciado por Jobs no MacWorld Expo, em Boston, em 6/8/97, o acordo causou surpresa e até descontentamento aos usuários tradicionais da Apple, acostumados a ver a Microsoft como arqui-inimiga. Em Wall Street, nesse mesmo dia, as ações da Apple subiram 33%.

O problema imediato principal da Apple é apontado por Carlton [1997: 437]: convencer aos clientes e parceiros de que a Apple tem ainda uma linha de produtos mercadologicamente viável. Isso é difícil de fazer, sendo uma empresa que tem amargado sucessivos prejuízos, principalmente em meio ao boom econômico atual do Vale do Silício, causado pela expansão da Internet.

Para fazer frente a esse desafio, a Apple precisará investir maciçamente em pesquisa e desenvolvimento, e é aqui que aparece o calcanhar de Aquiles da empresa, segundo Carlton [1997: 439]. Aparentemente, com os problemas financeiros acumulados, dificilmente a Apple conseguirá dar conta desse esforço sozinha. Aliás, nunca é demais lembrar neste momento, que Sculley [1987] chegou a confessar ter sido um erro desviar tantas verbas de pesquisa e desenvolvimento para o marketing durante a sua gestão.

Nessa linha de raciocínio, a possibilidade de uma fusão aparece na perspectiva de Carlton [1997: 440]. Cogita-se a possibilidade da Apple ser adquirida por um grande conglomerado de eletrônicos de consumo, como a Sony ou a Philips, ou algum gigante das telecomunicações, como a AT&T ou a MCI, que ainda veriam valor na marca Apple ao redor do mundo, e teriam fôlego para fazer os investimentos necessários.

Outra perspectiva é de a Apple se separar em duas empresas , uma de hardware e outra de software. A de hardware poderia ser controlada por algum parceiro, como a Motorola, enquanto a de software seria re-impulsionada. O problema é que hoje a força da plataforma Windows/Intel é muito maior do que no passado, e a competição na indústria de Informática é fortíssima.

A Apple já surpreendeu o mercado anteriormente, e está sendo conduzida, hoje mais do que nunca, por um grupo de executivos talentosos e experientes. No entanto, as dúvidas quanto ao futuro remetem às dívidas com o passado. Até que ponto os anos de disputas internas, falta de foco e orientação equivocada do passado comprometerão a sobrevivência da companhia? Até que ponto será a Apple capaz de se libertar das armadilhas psicológicas plantadas em sua cultura ao longo dos anos, para se ver como uma empresa diferente, renovada e renascida da sucessão de crises? Essas questões serão respondidas no futuro próximo, sob as luzes da competição ferrenha e da mudança veloz por que passa o mercado de Informática, em particular, e o ambiente empresarial em geral.

No entanto, o caso da Apple Computer Inc. é instrutivo para tomadores de decisão, empreendedores, investidores e estudiosos de administração em geral, tanto pela intrincada correlação de elementos conflitantes, como pela repercussão das decisões e ações na história da empresa e do mercado.

Referências bibliográficas

  1. Carlton, J., Apple, Random House, USA, 1997.
  2. Giannetti, E., Auto-Engano, Cia. das Letras, SP, 1997.
  3. Jager,R.D. e Ortiz, R., In the Company of Giants, McGraw-Hill, USA, 1997.
  4. Milioni, B., Comportamento Gerencial: o poder em questão, Nobel, SP, 1990.
  5. Morgan, G., Imagens da Organização, Atlas, SP, 1996.
  6. Motta, P.R., Transformação Organizacional, a teoria e a prática de inovar, Qualitymark, RJ, 1997.
  7. Sculey, J., Odisséia – Da Pepsi à Apple, uma viagem através da aventura, da idéias e do futuro, SP: Ed. Best Seller, 1987.

(Originalmente publicado no CD-Rom que acompanha o livro “Gerenciando Conhecimento” (Jayme Teixeira Filho, SENAC, Brasil 2001. Reproduzido com autorização do autor.)

1 comment

  1. Regina Oliver 11 Dezembro, 2009 at 01:14 Responder

    Na sua opinião quais foram as estartégias adotadas pela Aplle desde 1990 que deram certo? E que tipos de oportunidades os concorrentes trazem para a Apple atual aléma da ameaça da famosa fatia de mercado?

    No aguardo

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