Na sequência do lançamento do seu livro Organizational Knowledge and Technology, Rodrigo Magalhães responde a algumas questões sobre sistemas e tecnologias de informação e a sua relação com a gestão de conhecimento.
Diz no seu livro que SI/TI é crucial para medir e gerir os bens intangíveis de uma organização. De que forma?
Uma das razões principais para o aparecimento do interesse na Gestão do Conhecimento (GC) nos últimos anos, é a infusão e a difusão dos SI/TI nas organizações. Só faz sentido falar em GC se nós conseguirmos de alguma forma tornar o conhecimento organizacional (i.e. os bens intangiveis) em algo de mais visível e palpável. Esse é um dos papéis dos SI/TI. Zuboff (1988) foi o primeiro investigador(a) a falar nas propriedades de “textualização” da informação. A expressão criada por Zuboff foi “informate”, como sendo a capacidade dos SI/TI para converter em texto muita da informação existente na organização. Os management information systems foram a primeira forma de tornar visível muita da informação que sempre existiu na organização mas que, antes dos SI/TI, era impossível de capturar, processar, armazenar e recuperar.
Quando falo em “informação”, não estou a utilizar este conceito como sendo equivalente a “conhecimento”. O conhecimento é sempre pessoal. Eu costumo dizer que o conhecimento anda sempre em cima de duas pernas… Tudo o resto, não é conhecimento. O “resto” poderá ser informação ou dados. Contudo, é legítimo dizer que existe conhecimento tácito e conhecimento explícito e que é possível (em alguns casos) convertê-los um no outro. A partir do momento em que o conhecimento tácito se converte em conhecimento explícito, podemos dizer que estamos perante informação, que pode ser capturada, processada, armazenada e recuperada. E é neste momento que podemos falar na intervenção dos SI/TI na GC.
O outro tipo de impacte que os SI/TI têm na GC é no que diz respeito às tecnologias da comunicação. O enorme aumento nas capacidades de comunicação, quer internamente, nas organizações (p.e. as intranets e o e-mail) quer externamente, entre organizações (p.e. na gestão do supply chain e do demand chain), aumentaram também a possibilidade de aquisição de nova informação, passível de se converter em conhecimento novo.
Que três conselhos daria aos responsaveis de uma organização no que diz respeito aos SI/TI?
(1) Não entregar a gestão dos SI/TI a pessoas com uma abordagem exclusivamente tecnológica. Os SI/TI são, cada vez mais, uma tecnologia organizacional (nas palavras de Edvinsson & Malone, 1997) e, portanto, não é possível deixar este tipo de tecnologia, na organização, ao cuidado de engenheiros de software sem experiência ou formação em gestão.
(2) Elevar o nível de awareness sobre os problemas da gestão dos SI/TI, entre todos os gestores do negócios e criar um modelo de gestão de SI/TI onde estes tenham uma palavra importante a dizer nesta matéria.
(3) Dar mais atenção à questão da gestão por processos (BPM), dado que muitas vezes os sistemas de informação são implementados em cima de procedimentos e regras de trabalho completamente desasjustadas às potencialidades e mesmo ao desenho do software. A expressão “automatizar a burocracia” continua a ser muito verdadeira, no sentido de que as organizações continuam a funcionar da forma como sempre funcionaram, depois da introdução dos SI/TI. É, pois, muito necessário que as organizações conheçam bem a sua arquitectura de processos e que façam a gestão dos SI/TI de acordo com essa mesma arquitectura.
Qual o estado das organizações portuguesas quanto aos SI/TI?
Penso que as coisas têm melhorado muito, nos últimos 10 ou 15 anos, embora ainda aconteçam algumas coisas impensáveis em Portugal, tal como os falhanços sucessivos do programa informático para a colocação de professores, a que assistimos (atónitos), neste Verão. Em geral, as competências específicas para gerir a tecnologia existem, mas faltam ainda as competências para gerir os sistemas (i.e. a área de interface entre as tecnologias e o negócio). O peso das escolas de engenharia é enorme e isto faz com que a tendência seja sempre para formar mais engenheiros (ou para-engenheiros, como é o caso da maioria dos cursos de informática de gestão), para trabalharem nas organizações.
Já não existem os mega departamentos de SI/TI geridos por informáticos e caminha-se rapidamente para uma integração real da gestão dos SI/TI na gestão dos negócios. Contudo, ainda existem enormes pressões, especialmente vindas do exterior das organizações, para “comprar a granel”, isto é, para comprar tecnologia só porque está na moda ou porque os outros também compram. Isto tem consequências gravosas porque se fazem muitos investimentos em tecnologia que depois não têm o mínimo de sustentação dentro da organização, em termos de utilização, rentabilização, etc.. Aqui, coloca-se novamente o problema da falta de formação e de informação, sobre SI/TI, por parte dos gestores do negócio.
Uma consequência da falta de formação e de informação, sobre SI/TI (bem como de métodos muito fracos de accountability) é a tendência para se comprar sempre marcas estabelecidas (e caras). Muito à semelhança do que se passou nos anos 80, quando se dizia que “nunca alguém foi despedido por comprar IBM” e apesar de mais alguns anos de experiência acumulada, a tendência continua a ser a mesma. Há uma dependência exagerada em relação às opiniões e às pressões do mercado dos SI/TI, o que, na minha opinião, revela falta de competência e falta de confiança, no interior das organizações.
Acredito que a situação possa melhorar significativamente quando a formação em sistemas de informação ficar institucionalizada nas escolas de gestão e de organização. Isto não significa, como é evidente, replicar nas escolas de gestão e de organização, os programas de formação das escolas de engenharia, mas criar novos programas de formação e de investigação que tenham, como ponto de partida, os pressupostos da organização e não os da engenharia. Tem-se feito alguma coisa neste sentido, nos últimos anos, mas ainda se está muito áquem daquilo que o país precisa.
Nas suas respostas anteriores e na definição de sistemas de informação que oferece no seu livro deixa transparecer os SIs como um ingrediente da gestão de conhecimento. Quais são os restantes ingredientes?
Os SI/TI são um ingrediente importante da gestão de conhecimento. Contudo, não são o ingrediente mais importante. Na minha opinião, a GC tem três ingredientes principais, com as seguintes importâncias relativas: os SI/TI (20%), a estratégia (40%) e o comportamento organizacional (40%). A estratégia é um ingrediente muito mais importante do que os SI/TI porque se não houver um enfoque claro na GC, na estratégia de negócio, não será possível operacionalizar qualquer tipo de acção que tenha a ver com o conhecimento organizacional, de uma forma séria e sustentada.
O comportamento organizacional também é um ingrediente mais importante do que os SI/TI porque, conforme disse anteriormente, uma grande parte do conhecimento existente na organização é conhecimento tácito, ao qual os SI/TI não têm acesso (directo). O comportamento organizacional tem a ver, por exemplo, com a importância que é dada ao trabalho em grupo (onde incluo as comunidades da prática), com as políticas e as práticas de comunicação interna, com os estilos de liderança, com as políticas e as práticas de gestão de recursos humanos (de onde destaco as políticas de compensação), bem como com o próprio desenho estrutural / processual da organização.
Fala bastante do alinhamento da estratégia organizacional com SI/TI. Como se poderá conseguir o alinhamento da GC com a estratégia organizacional?
O alinhamento estratégico dos SI/TI de que falo no meu livro, é um alinhamento orgânico e que se faz através da base, isto é, através dos relacionamentos entre as pessoas. Em minha opinião, é completamente inútil planear o alinhamento no papel, através de ligações abstractas entre variáveis (p.e. entre SI, TI, estratégia e mudança) se não houver, no dia-a-dia, uma prática de alinhamento das pessoas, na organização. Não são só os SI/TI que devem estar alinhados. Tudo deve estar alinhado, por exemplo o marketing e a produção, a gestão de RH e o estilo de liderança, a estrutura e os processos, etc.. Não acho que seja possível planear, separadamente, cada um destes alinhamentos. O alinhamento deve começar pela sua forma mais básica, isto é, pela criação de um clima generalizado de cooperação entre as pessoas (como dizia, já nos idos de 1937, um dos pioneiros destas matérias, chamado Chester Barnard).
Portanto, no que diz respeito ao alinhamento estratégico da GC, a situação é a mesma: é preciso começar por baixo. Há dois autores contemporâneos, da área da estratégia, que dão a “receita” para todos os alinhamentos que são necessários para que o conhecimento da organização se desenvolva e seja utilizado para atingir os objectivos do negócio. Ghoshal e Bartlett (1998) dizem que aquilo que vai distinguir as organizações do século XXI, em relação às do século XX é a queda dos três Ss – Strategy, Structure e Systems – e a ascenção dos três Ps – Purpose, Processes e People. Eu estou completamente de acordo com esta visão e acredito que a mesma seja o fundamento principal para a institucionalização da GC em todas as organizações. Se nós conseguirmos construir organizações suportadas por estes três pilares (Purpose, Processes e People), teremos o problema dos alinhamentos resolvido.
Apos tantos anos de trabalho e investigação nesta area, qual pensa que vai ser o próximo “novo paradigma” organizacional?
Existem sinais de um “novo” paradigma organizacional que, em parte, não parece ter muito de novo. Nos anos 90 e em consequência de uma nova abordagem à micro-economia e à estratégia empresarial (conhecida por Resource-Based Approach) começou (ou recomeçou) a falar-se na importância do conhecimento e do capital intelectual. Quando analisamos os componentes chave da gestão do conhecimento, vemos que, em grande parte, são as mesmas questões de já vinham sendo faladas há mais de setenta anos, nomeadamente, “relacionamentos”, “valores”, “climas”, “liderança”, “emoções”, etc.. O que há aqui de novo, contudo, é o enfoque no conhecimento e na necessidade de uma série de enablers comportamentais, para que o conhecimento possa crescer, de forma orgânica e estratégica. Assim, acredito que uma das características do novo paradigma organizacional vai ser uma viragem muito clara para todas as questões do foro emocional e comportamental.
Penso que na era do conhecimento, o paradigma organizacional vai ter uma outra perspectiva dominante: a perspectiva do indivíduo. Por um lado, o cliente individual (e não massificado) vai-se institucionalizar como o centro das preocupações da gestão, no que diz respeito ao mercado. Por outro lado, o colaborador individual vai ser o grande desafio dos gestores, no que respeita ao lado interno da organização. A primeira, é a consequência do enorme crescimento da capacidade de escolha do comprador e a institucionalização, em todo o mundo, do buyers’ market. A segunda, é consequência da mudança radical no tipo de trabalho que uma maioria crescente de trabalhadores executa – trabalho de conhecimento (knowledge work) – bem como nas alterações profundas na natureza da ligação entre o indivíduo e a empresa. As empresas já não garantem (como garantiam) estabilidade de emprego e ninguém e, portanto, há necessidade de se pensar num novo tipo de contrato entre as duas partes. Ghoshal e Bartlett (1998) chamam-lhe o novo “contrato moral”. Estas duas perspectivas irão exercer pressões sobre e dentro das organizações, por forma a fazer emergir o novo paradigma.
Por último, penso que a terceira perspectiva que irá dominar o novo paradigma organizacional será a perspectiva da integração. A gestão do conhecimento é, por definição e por natureza, uma actividade holística e englobante. Portanto, para se gerir na era do conhecimento e para se gerir o conhecimento, é absolutamente necessário ter-se uma perspetiva integrada da organização, o que implica a utilização de metodologias e ferramentas relativamente desconhecidas. Estou a pensar nos modelos arquitecturais, que descrevem a organização utilizando uma linguagem comum a todas as áreas e um método integrador. Parafraseando John Zachmann, numa intervenção em Lisboa no passado mês de Dezembro, “não é possível mudar qualquer coisa que nós não conseguimos descrever”. Ora, a arquitectura é uma forma de descrever. A existência de modelo arquitectural em todas as organizações vai ser a única forma de se lidar com a complexidade e com a mudança permanente, caracteristicos do novo paradigma organizacional.