Céline Schillinger

Céline Schillinger

Céline Schillinger é autora do livro Dare to Un-Lead, um livro absolutamente fantástico que já tive oportunidade de aqui comentar. O livro foi apenas o mote para uma entrevista que já estava em dívida e na qual transparecem bem o seu conhecimento, a sua inteligência e a sua vasta experiência.

Céline, quais consideras serem os principais obstáculos às mudanças em termos de liderança?

Os obstáculos são múltiplos e por vezes contraditórios. E isso é que complica tudo.

Em primeiro lugar, há a diversidade de aspirações e até mesmo de representações. O que faz um bom líder? Dependendo da nossa história, da nossa idade, dos nossos valores, eu e tu não teremos necessariamente a mesma resposta. O que tu consideras demasiado controlador, eu posso considerar agradavelmente reconfortante. Para além disso, eu posso não ter a mesma reação que tinha quando era mais nova.

Agora, assumindo que concordamos com o que significa liderar bem nos dias de hoje, o que é que impede os líderes “old school” de evoluirem nessa direção? Vejo cinco razões principais.

A força dos hábitos, ossificados nas regras de funcionamento que parecem imutáveis. Por exemplo, ninguém numa grande empresa quer mesmo abanar o sistema de avaliação de desempenho, ou o sacrossanto “feedback“. O desejo de “encaixar” e a força da cultura corporativa conduzem à conformidade. Por vezes até mesmo à “estupidez funcional” (“functional stupidity“), como refiro no meu livro. Há também uma tendência para reproduzir comportamentos comprovados, ou comportamentos que parecem funcionar para líderes nas camadas superiores à tua.

Pressão para os resultados a curto prazo. As pessoas nas organizações estão sob uma pressão maluca e que está sempre a aumentar. Têm de produzir – bens, serviços, números. Esta é a lógica de crescimento, o motor do capitalismo contemporâneo, no qual se baseia o nosso modo de vida; e a acumulação de lucros por todos aqueles que podem. Isto aumenta o comportamento competitivo, e anti-colaborativo. Para além disso, a tecnologia, que é suposto ajudar a facilitar as coisas, aumenta a pressão para a velocidade e a subjugação a indicadores. É difícil ser um “bom” líder simultaneamente em termos económicos e humanos.

Menosprezo pelo desejo de mudança. As pessoas que estão muito ocupadas com o seu trabalho costumam ter pouco tempo para uma análise sensível do contexto em que operam. Consomem dados diretamente relacionados com a sua produção, mas poucas se preocupam com a leitura e reflexão sobre as mudanças societais. Por vezes veem o reflexo dessas mudanças nos seus filhos adolescentes, mas subestimam o impacto que têm no local de trabalho. Porém, as mudanças são reais e profundas: o questionar da autoridade e expertise, a fragmentação de identidade… Estas mudanças não são apenas um distúrbio que se deve minimizar: são uma oportunidade que deve ser aproveitada para mobilizar mais e melhor as pessoas.

A aderência dos privilégios. Hoje a liderança é muitas vezes associada com status – oficial ou simbólico. Este status dá privilégios: uma pessoa que outros consideram um “líder” beneficia de atenção, mais consideração, e muitas vezes privilégios materiais. É difícil abdicar deles, mesmo que seja um pouco! Especialmente quando acreditamos que a liderança é um recurso escasso, apenas acessível a uma pequena elite. Muito poucas pessoas em posição de responsabilidade corporativa acreditam verdadeiramente que a liderança é um recurso abundante. Numa espécie de profecia autorrealizável, a forma como se agarram à responsabilidade, à informação e ao poder é uma forma de dependência reativa, interpretada como “falta de liderança”.

Falta de coragem. É preciso coragem para questionar as nossas próprias práticas… para nos afastarmos das expetativas das nossas chefias… para escolher o risco da experimentação em vez do conforto do que é familiar. Por isso é que o título do meu livro destaca o verbo ousar (“Dare“). Quero prestar tributo às pessoas corajosas que embarcaram numa liderança coletiva, e ajudar aquelas que se sentem tentadas a fazê-lo.

Todos estes obstáculos são reais, mas nenhum deles é inultrapassável.

No teu livro falas de arbitrariedade de gestão e de cultura de silêncio. De que forma é que as ferramentas digitais podem ajudar?

Começo por explicar o que é a arbitrariedade de gestão. É o facto de que o teu chefe pode, praticamente sem mecanismos de controlo, decidir o teu percurso profissional, o teu vencimento, as tuas condições de trabalho, a forma como és vista pelo resto da empresa – e às vezes até por ti mesma.

A filósofa Elizabeth Anderson equipara os nossos locais de trabalho a “governos autoritários privados” (“private authoritarian governments“). A cultura de silêncio – e o lobbying ativo daqueles que têm um interesse nela – mantém todo este sistema.

As ferramentas digitais podem limitar as nossas liberdades, como disse anteriormente, mas também podem equilibrar as coisas – pelo menos um pouco.

Como?

Contornando a atomização dos colaboradores, através da fácil constituição de comunidades de prática, de alianças, de redes de afinidade. Ao abrir o trabalho em curso ao escrutínio de muitos colegas; ao aliviar a mordaça do julgamento exclusivo da gestão.

Atualmente é muito mais fácil falar sobre o nosso trabalho. Ser prestável é apreciado e reconhecido pela rede, independentemente da afinidade com a nossa chefia.

Isto abre muitas oportunidades para crescimento pessoal e profissional. Estou a falar de redes sociais internas, que são uma das minhas paixões, mas também de ferramentas que ajudam com storytelling, visualização, etc.

Claro que a tecnologia digital não é suficiente – temos de investir energia no coletivo para podermos beneficiar dele.

Na secção Fraternidade do teu livro falas muito dos movimentos sociais e do ativismo como fontes de inspiração para o ativismo corporativo. Qual a diferença entre ativistas corporativos, intrapreneurs e gig mindsetters?

O ativismo tem sido uma enorme inspiração para o meu trabalho, e há muito que acredito que é uma oportunidade fenomenal para as organizações e para todos nós.

Ativista corporativa, intrapreneur, gig-mindsetter (olá, Jane McConnell!), rebelde corporativa… podíamos perder tempo com definições, mas mais importante do que as diferenças é o que aproxima estes termos.

Todos aqueles que usam estas designações querem produzir mudança. Até que ponto, de que forma, para que fim, e com quem, cada um apresentará as respostas que quer. Mas o que eu digo a todos eles: descobre quem és, e junta forças! Liga-te, cria redes, mobiliza outros à vossa volta, apoiem-se uns aos outros! E pensa seriamente na teu próprio contributo para o fenómeno de resistência às tuas ideias. Pensa no teu próprio papel nas dinâmicas de poder. Às vezes, sem sabermos e pelas melhores intenções, acabamos por replicar o sistema que estamos a tentar mudar: um sistema com silos, chefes, competição, limites à informação… Se queremos mesmo mudar as coisas, comecemos por nós próprias.

Liga-te, cria redes, mobiliza outros à vossa volta, apoiem-se uns aos outros!

No livro referes que os movimentos nem sempre têm o impacto desejado mas que frequentemente têm um impacto profundo nos ativistas. Que impacto tiveram em ti as tuas experiências como agente de mudança?

Participar num movimento coletivo em torno de uma causa dá um sentimento de força bem superior ao que sentiríamos se estivéssemos sós.

A descoberta de um novo poder para agir transforma a identidade das pessoas de forma duradoura. Nunca mais regressam totalmente ao seu estado anterior, porque adquiriram uma nova consciência do seu possível papel transformador, um novo sentido de agency. Isto é o “efeito biográfico” (“biographical effect”) dos momentos sociais.

Eu própria vivenciei este efeito de forma muito direta devido ao meu envolvimento num movimento pela diversidade na empresa em que trabalhava. Perceber que tinha mais força do que pensava, e toda a aprendizagem que construí através desse movimento e de outros que se seguiram, e os contactos que fiz nessas ocasiões, foram decisivos para mim. Permitiram-me fazer coisas que nunca antes tinha pensado: falar em público… começar a minha própria empresa… escrever um livro. A nossa conversa é, ela mesma, um resultado deste processo.

Uma coisa que percebi através destas experiências é que pensarmos em nós próprios em termos de “boa”, “certa”, ou “melhor”, é na verdade uma barreira para a mudança. Tem mais impacto ligarmo-nos aos outros em torno de questões como: “O que se está a passar? O que é que isso significa? O que podemos fazer?”

É da conexão que nascem ideias de mudança mesmo boas. É o processo relacional, a co-construção que nos faz avançar em conjunto, com vontade, em direção a algo novo.

Para escreveres o livro, foste numa caça ao tesouro, procurando num vasto leque de fontes respostas e enquadramento para a tua própria experiência pessoal e profissional. De tudo o que encontraste, o que é que teve mais impacto para ti ou o que é que te surpreendeu mais?

Caça ao tesouro é uma boa forma de descrever… há imensos tesouros entre a bibliografia listada no livro. Alguns que tinha acumulado ao longo dos anos, tinham deixado uma marca – como é o caso de um simples texto de John Wenger de 2014 sobre a diferença entre empowerment e enablement, e que ainda hoje acho extremamente relevante. Outros encontrei ou redescobri durante a minha pesquisa para este livro.

Regressei ao Camus e à sua ética da rebelião. Descobri o pensamento de Barry Oshry sobre sistemas humanos: uma verdadeira revelação. É uma área que pretendo continuar a explorar. Tem aplicações reais, e bem concretas na área da liderança e da eficácia coletiva.

Fiquei verdadeiramente impressionada pela forma como fizeste sentido de um tão vasto leque de fontes e conteúdo. Podes partilhar as ferramentas que usaste ou a abordagem que seguiste para uma tarefa hercúlea como esta?

Foi mesmo isso que senti: uma tarefa hercúlea! Quase me perdi nela. Mas para mim era muito importante ligar todas as ideias importantes que até hoje marcaram o meu percurso como agente de mudança corporativa. Queria prestar homenagem a todos os pensadores que me inspiraram: homens e mulheres, de diferentes países e momentos na história. Queria trazer vozes que não se ouvem muito – autores de países não-anglófonos, ou de outros círculos que não o endógamo círculo das estrelas dos livros de liderança.

Este livro é sobre redes, e eu queria que ele próprio fosse uma rede.

Por fim, eu queria mostrar como tudo funciona como um sistema – um sistema rico e complexo. Esta representação é um complemento útil à simplificação extrema que se encontra em muitos livros de “como fazer”.

Para esta síntese, combinei um ficheiro Excel que se foi agigantando ao longo do tempo; notas no OneNote; notas num ficheiro Word para cada capítulo; um diretório de artigos em PDF; livros em papel, livros eletrónicos e impressões de artigos anotados… Tudo agregado com um mapa mental Coggle que me ajudou a manter a visão global ao mesmo tempo que me deixava ir ao detalhe. Houve dias em que a complexidade me trouxe dores de cabeça 😄

Escreves de partilha e retenção de conhecimento, principalmente no contexto das comunidades. Vejo a partilha e retenção como dois processos que devem ser endereçados como parte de uma gestão de conhecimento estratégica. Para ti, o que é a gestão de conhecimento?

Ao longo da minha carreira experimentei dois tipos de gestão de conhecimento.

A abordagem clássica, baseada em taxonomia, delineações, autorizações, educação, armazenamento de informação… É certamente necessária, mas infelizmente serve uma conceção desatualizada de trabalho de grupo, é muito aborrecida, e é contradita por cada plano de redundâncias destinada aos colaboradores mais seniores – em que vemos que reduzir os custos com pessoal é sempre mais importante do que a gestão de conhecimento.

A outra abordagem que vi funcionar é fazer com que as pessoas queiram fazer coisas juntas. Baseia-se no engagement, na criação de condições favoráveis para a ligação e para as interações. Esta abordagem é extremamente benéfica para o conhecimento empresarial, que circula e aumenta em todos os níveis: nas comunidades de prática, nas redes de voluntários, nas redes sociais corporativas, etc. Penso que é de todo o nosso interesse desenvolvê-la, e espero que o meu livro dê algumas ideias neste sentido.

O conhecimento é um ingrediente de mudança ou será que melhor conhecimento é um produto da mudança?

Penso que é mais um produto.

Muitas vezes acreditamos erradamente que o conhecimento gera mudança, mas o conhecimento não existe como tal. Há conhecimento que faz sentido para algumas pessoas e não para outras; há interpretações; há momentos em que estamos abertos a um certo conhecimento, e outros momentos em que não. É por isto que empurrar o conhecimento para as pessoas, tentar convencê-las com informação, é insuficiente – e até contraproducente.

Na origem da mudança, há histórias, representações coletivas, um processo de conexão.

Na origem da mudança, há histórias, representações coletivas, um processo de conexão. É daqui que vem o conhecimento.

Céline, esta entrevista já vai longa. Por isso, e para terminar, imagina que te podia conceder um desejo que contribuísse para a melhoria do mundo do trabalho. Que desejo quererias tu que fosse?

O trabalho não irá mudar significativamente enquanto deixarmos as empresas privatizar os lucros e socializar os enormes custos das atuais práticas de trabalho.

Vê a epidemia de burn-out, a reforma antecipada de trabalhadores considerados demasiado velhos, a fragilização dos trabalhadores (e do planeta) pela fragmentação das cadeias de fornecimento e da gig economy, a violência social de muitos que são desrespeitados no trabalho…

Com uma varinha mágica, alinharia todos os países do mundo com um imposto uniforme às empresas. Isto eliminaria a competição de impostos entre países.

Finalmente, seríamos capazes de fazer com que as empresas assumissem verdadeiramente as suas responsabilidades; e iniciassem mudanças reais que melhorassem a qualidade de vida no trabalho – não apenas as coisinhas pequenas.

Já que estou numa de desejar, aproveitaria a oportunidade para limitar a desigualdade salarial entre as camadas de topo e as camadas inferiores das hierarquias corporativas. Os CEOs recebem hoje 320 vezes mais do que um trabalhador de nível médio (e até mais dependendo dos setores) – há 30 anos atrás, esse fator de era de 58 vezes. Essas desigualdades não só são injustificáveis, como minam a possibilidade de um mundo comum. E no entanto, essa possibilidade é essencial para que se encontrem soluções em conjunto para os mega-problemas, para que se construa um mundo que funcione para todos nós.

Nota: A entrevista em inglês está disponível no Linkedin.

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