Foto do livro Dare to Un-Lead (Schillinger, 2022)

Dare to Un-Lead

Neste livro, Céline Schillinger defende que o mundo do trabalho precisa de melhor liderança e que essa liderança deve aspirar a três valores: liberdade, igualdade e fraternidade.

Céline Schillinger é uma experiente profissional francesa, com mais de 30 anos de trabalho em pequenas e grande empresas em vários continentes, e agora consultora para empresas várias. Ela é uma agente de mudança (change agent), uma ávida leitora e praticante de remo. As páginas deste livro – Dare to Un-Lead: The Art of Relational Leadership in a Fragmented World – são um reflexo de tudo isso.

Este livro é para si se acredita que “o mundo do trabalho devia respeitar mais as pessoas” e que “a mudança não acontece por si mesma”.

O valor e a singularidade deste livro advém de vários elementos:

  • a diversidade e profundidade da pesquisa feita pela Céline Schillinger;
  • a forma como extrai sentido dessa pesquisa à luz da sua rica experiência pessoal e profissional;
  • as pistas que oferece para melhores estilos de liderança; e
  • o seu desejo contagiante de moldar um melhor mundo de trabalho.

O livro começa com uma crítica ao estilo de liderança atualmente preponderante – a forma como está a ferir as organizações em que trabalhamos, o mundo em que vivemos, e, em última instância, cada um de nós. A conclusão é que precisamos de melhores líderes.

“When leadership demonstrates its capacity to change, when it builds bridges and encourages change by anyone from anywhere, when it nurtures the solidarity of the human community at work, then it is truly transformative, living up to its revolutionary potential. (…) Success requires that we make choices in a spirit of humility, courage, and curiosity, with both generosity and love. The results are incredible.” (p 274)

O livro está dividido em três partes: liberdade, igualdade e fraternidade. Cada parte esboça os contornos de cada um desses valores no contexto do trabalho, descreve abordagens que dão corpo e ajudam a criar esses valores, e oferece pistas sobre como os líderes se podem adaptar para dar mesmo vida a melhores ambientes de trabalho.

Liberdade

“Liberty at work is the unconditional possibility given to workers to hold and express independent judgement on matters of their organization, to avoid managerial arbitrariness, and to direct their work so that it not only produces value but contributes to their dignity as human beings.” (p 49)

“Liberty, in the sense of ‘free will’, is a necessary condition of engagement. Liberty creates the conditions in which innovation, collaboration, and accountability flourish.” A atual realidade do trabalho fere a liberdade devido à cultura de silêncio, à arbitrariedade da gestão e à falta de ação (agency).

No capítulo 4, Céline conta a sua própria história de mudança. A sua jornada pessoal e profissional ajudou-a a estar mais ciente de três aspetos que traz para a sua atividade:

  • diversidade radical – a minha perspetiva é apenas uma de muitas;
  • experiência de minoria – a rejeição e a desvalorização pessoal que resulta de outros nos considerarem inferiores;
  • o interesse na arte que desafia as normas – “I believe we can take creative risks for the greater good. We can nurture corporate artistry”, escreve ela.

Igualdade

“Liberty without equality is just a privilege that favors the powerful.” (p 116)

“Equality at work welcomes differences and recognizes the contribution of each individual, enabling opportunity for all. It is the foundation from which networks connect people in all their diversity, producing collective intelligence.” (p 120)

O sexto capítulo é sobre igualdade (ou falta dela). É sobre como as organizações tentam promover igualdade mas ficam aquém – ou pioram as coisas – por se encontrarem num contexto de desigualdade imposto pelas estruturas hierárquicas. Olha especialmente à desigualdade que as mulheres sofrem no trabalho.

Com este cenário, a igualdade estrutural hoje não é possível. Surgem então duas estratégias para que se atinja a igualdade simbólica: a nulificação da diferença e a compartimentalização da diferença.

O capítulo 7 é um hino às redes com um foco no papel que desempenham na criação de igualdade.

As redes não são suficientes para lutar contra o sistema imunitário das organizações, como John Hagel lhe chama, mas é possível criar um sistema operativo duplo, – um que alavanca os efeitos positivos da estrutura e das redes existentes, para aumentar a agilidade, a velocidade, a inovação e a criatividade.

“Our work benefits from the density and the diversity of our networks, and also from the quality and meaningfulness of interactions.” (p 154)

A Céline destaca o papel da tecnologia digital para facilitar as redes distribuídas. Considera que a tecnologia escolhida será útil “if it enables public and private communities, asynchronous exchanges, language translation, visual communication, easy and mobile access, search, and integration with other tools used by the company.”

Apesar da gigante oportunidade criada pelo trabalho remoto imposto a tanta, tanta gente, as tecnologias sociais digitais não estão a cumprir a sua promessa de verdadeiro impacto. “Culture (…) is the main reason why the corporate adoption of social networking tools remains so disappointing. The cultural change that they entail seems out of reach for some organizations, unwanted by the leaders of others. The network culture is one of transparency instead of secrecy, trust instead of control, influence instead of authority. It reduces power distances and the advantage of social grouping. It brings traditional, status-driven leaders down from their pedestals, making visible a different kind of leadership exemplified by those who add value to the community, those who are helpful, interesting, interested, and generous. This requires a learning mindset and humility.”

Fraternidade

“Organizations must learn to create the conditions for fraternity, allowing people to be ‘seen’ by their peers, by the hierarchy, recognized and acknowledged, losing their anonymity. Employees need to be respected in their full humanity, their diversity, and their free will.” (p 203)

“It is neither organizational membership nor communication nor teambuilding that create a sense of fraternity but collective action in service of a cause”, i.e. ativismo conjunto e com propósito. Para que tenha sucesso, é preciso haver liderança da comunidade.

A secção sobre fraternidade foi a mais transformadora para mim. Talvez pela forma como combina os mundos do ativismo social e corporativo que tenho trabalhado separadamente.

“Corporate activism as I practice it is a new leadership strategy that places the methods, tools, and practices of social movements in service of the organization’s purpose. This is about creating the conditions that encourage an activist mindset and way of work, maximizing the opportunity provided by the available human potential to boost innovation and business performance, to retain organizational relevance, and to contribute positively to society. It is about crafting an intentional and deliberate work culture while keeping in mind that movements cannot be manufactured, engineered, directed, or controlled. Corporate activism is fraternity through common action.”

A ideia de movimento está no centro, mas os movimentos não podem ser mandados. O engagement advém de um “collectively established purpose” e de um “sense of possibility, rather than the necessity of carrying out a given project”.

Construindo sobre esta ideia, o valor da fraternidade está muito visível em comunidades.

“Communities empower people, broadly and deeply, beyond the immediate proximity of their network of colleagues. Members feel seen and heard by their peers. This validation lowers their vulnerability, increases their agency, and makes people more likely to share their work in progress, opening it up to contribution by other people, creating wider ownership as well as greater relevance.”

As comunidades de prática (CoPs), especialmente importantes na minha atividade profissional, são um exemplo de comunidades.

“CoPs make a valuable contribution to organizational speed and agility, to the resolution of unstructured problems (…), to knowledge-sharing beyond traditional structural boundaries, and to the development and maintenance of long-term organizational memory.”

Activism is “passion in action”.

Indo beber à sua experiência de remo, a Céline identifica três faróis para que os líderes fraternity-inducing consigam criar um melhor tipo de trabalho: busca coletiva, abertura sensorial, e auto-melhoria.

A liderança fraternity-inducing é apenas um dos vários tipos de liderança considerados no livro. Para além desse, gostei particularmente destes outros dois:

  • engagement leadership, que “seeks to enable more liberty at work”;
  • líderes como jardineiros – “Leader-gardeners leave behind assertiveness, pride, and sleek corporate communication in favor of sharing dilemmas, questions, and uncertainties.”

O livro termina com 17 questões que eu acredito representarem simultaneamente o quanto ainda há para descobrir e a reflexão e introspeção que este livro provoca.

Os meus destaques

Comunidades de intenção e impacto

Há muito que trabalho com comunidades de prática, especialmente como abordagens eficazes e conscientes para a partilha e retenção de conhecimento. A Céline traz-nos a ideia de fraternidade e, com ela, o concept de um tipo especial de comunidades.

“[A] fraternity is a community of intent and impact,” escreve ela. E alarga esse conceito ao de “camaradas em intenção”: “a group that no longer owes its existence to circumstances but to human will”.

Sinto, como sente a Céline, que queremos que as nossas organizações estejam ancoradas em fraternidade, que sejam comunidades de intenção e impacto, pode ser transformador: para quem lá trabalha, para a própria organização e para o mundo em que nos encontramos.

“Communities of intent and impact”: obrigada por isto, Céline!

O trabalho como uma democracia de iguais

A ideia de democracias geridas como empresas é deveras preocupante. Mas a Céline acredita que o inverso abre um mundo de boas possibilidades. Pode o trabalho ser uma democracia de iguais? Adoro esta ideia.

O que podemos criar em conjunto?

“Organizational life would be refreshingly different if we were willing to regularly ask one another, ‘What can we create together?’”

É uma pergunta tão simples, não é? E no entanto… Quantas vezes a ouvimos? Quantas vezes começamos uma conversa dessa forma? Quantas vezes estamos genuinamente abertas às respostas, às possibilidades?

Crescer liderança

Referindo-se a liderança, a Céline escreve “the more you share it the bigger it grows”. É interessante como o mesmo poderia ser escrito sobre conhecimento.

Intensamente presente

No livro a Céline transcreve esta pérola de Esko Kilpi: “Knowledge work is about human beings being more intensely present for each other.”

Não sei o que me impressiona mais: se a beleza destas duas palavras juntas “intensely present” ou se o profundo significado da preposição “for”.

E…

Quero mergulhar no trabalho de Esko Kilpi, Manuel Castells e Marshall Ganz.


Este é o primeiro livro da Céline Schillinger. Admiro a forma como ela refletiu sobre a sua experiência, como isso despertou a sua curiosidade, como vasculhou em busca de respostas, e como juntou todas as peças.

Apesar no vasto número de fontes e autores em que se apoiou, o livro nunca parece uma manta de retalhos: parece, sim, um caro pano de seda tecido com um único fio desde o início até ao fim.

É um livro muito bem escrito e fácil de ler, mas não é uma leitura rápida. Há nele tanta riqueza, tantos apontadores, tantas ideias, que precisamos tempo para digerir, investigar, e tirar notas para referência futura.

Vídeo da apresentação de Céline Schillinger na conferência Social Now 2019. Foi o trabalho de preparação desta apresentação que lhe deu a vontade e a inspiração para a escrita do livro

O livro Dare to Un-Lead devia ser uma leitura obrigatória para líderes e gestores. Infelizmente, temo que poucos sintam ter o tempo ou a necessidade para tal.

A Céline disse-me que foi de propósito que não inclui um sumário de cada capítulo. Não quis contribuir para o rápido consumo de ideias superficiais, uma doença de que padecem os líderes atuais. Para além disso, nenhum sumário seria capaz de transmitir a riqueza e proporcionar a aprendizagem que podem resultar da leitura integral do texto. (Nenhum sumário que ela pudesse ter escrito e muito menos este minha resenha crítica!)

Uma coisa é certa: se os atuais líderes não lerem este livro, cabe a cada um de nós, que ler o livro, tornarmo-nos líderes ou abraçar a ativista que há em nós para melhorarmos o mundo de trabalho com igualdade, liberdade e fraternidade.

Capa do livro Dare to Un-Lead (Schillinger, 2022)

Sobre o livro:
Dare to Un-Lead: The Art of Relational Leadership in a Fragmented World
Céline Schillinger. Figure 1 Publishing, 2022.


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Ao ler este livro vieram-me estes outros à cabeça:

Veja o texto original em inglês no LinkedIn.

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